Em 2012, Código Florestal instituiu um mecanismo de criação de mercado para que a reserva legal fosse compensada através da compra de propriedades privadas inseridas dentro de unidades de conservação. Ou seja, para aqueles proprietários rurais que não tinham o mínimo de área com vegetação nativa — que desmataram suas terras até 2008 — seria possível comprar terra dentro de uma unidade de conservação e então, doá-la para o poder público.
O mecanismo foi uma tentativa de garantir que os proprietários rurais cumprissem suas obrigações de reserva legal, sem perder a produtividade de suas terras. Ao mesmo tempo, era uma forma de assegurar a regularização fundiária das unidades de conservação.
Mas há diversos desafios para o funcionamento desse mercado, especialmente no bioma Cerrado. Este foi o tema da tese de doutorado de Ana Karina da Silva Bueno, pesquisadora do Instituto de Energia e Ambiente (IEE).
O Cerrado, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente de 2018, já perdeu metade de seu território, sendo a agropecuária responsável por 94% do desmatamento. “As grandes propriedades monocultoras, o acelerado avanço da fronteira agrícola e o consequente aumento do preço da terra torna a compensação das áreas de reserva legal pelo mecanismo de doação de área em unidade de conservação bastante atrativo economicamente”, explica a recém-doutora.
Fundamentalmente, é preciso entender as diferenças entre a reserva legal e a unidade de conservação. Ambas prezam pela preservação ambiental, mas atuam em esferas diferentes. A reserva legal é uma obrigação do proprietário rural, que deve resguardar determinada porcentagem de suas terras para a vegetação nativa. Isso não significa que não possa haver exploração comercial, através da agroecologia, por exemplo. A porcentagem depende do bioma e se a propriedade está inserida na Amazônia Legal, como é possível ver no gráfico a seguir:
Já as unidades de conservação de domínio público, estudadas na tese de Ana Karina, são propriedades que devem estar em nome do Estado e são administradas pelo gestor federal, estadual ou municipal, dependendo da área em que estão inseridas.
O primeiro Código Florestal brasileiro, em 1934, já mencionava o termo “reserva legal”, uma porcentagem de terra dentro de propriedades rurais privadas que deve ser mantida com sua vegetação nativa. A medida, embora essencial para a conservação do meio ambiente, não agradou na época. E não agrada até hoje.
Em 2000, a Lei do Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC) foi promulgada. Dessa vez, foram criadas as tais unidades de conservação, que, segundo a lei, são definidas como um espaço territorial “com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”. Novamente, as plantações e as criações de gado perdiam espaço.
Em um país em que a base da economia é o agronegócio, regular o uso da terra em propriedade privada é tema de polêmica. Principalmente se essa regulação envolver perda de produtividade.
O lado positivo da compensação
O mercado criado pelo Código Florestal é benéfico pois ao mesmo tempo em que regula ambientalmente a reserva legal inserida dentro da propriedade privada, faz também a regularização fundiária das unidades de conservação em domínio público, explica a pesquisadora. Ou seja, o proprietário privado fica a par com suas “obrigações ecológicas” e o Estado obtém um espaço de conservação ambiental.
De início, o mecanismo pode parecer prejudicial para os agropecuaristas. Aqueles que desmataram as terras até 2008 têm de gastar uma quantia considerável para compra de terra. Terra essa que nem ficará em sua posse. Se feita uma análise rasa, essa medida é rapidamente classificada como “cilada”.
Porém, é preciso analisar mais profundamente. Os custos para restauração da vegetação nativa são altos e o trabalho é extenso. Portanto, “é muito melhor para o produtor rural que desmatou até 2008 manter a área produtiva e comprar título de um proprietário que tem terra inserida dentro da unidade de conservação, porque será uma terra mais barata”, esclarece a pesquisadora.
Para o Estado, os benefícios são mais visíveis. Fiscalizar as áreas de conservação, indenizar e desapropriar as propriedades privadas dentro do território exige um orçamento robusto e uma equipe extensa. Nesse contexto, a consolidação territorial, ou seja, a afirmação da existência das unidades, torna-se difícil. Assim, Ana Karina observa que “o mecanismo é uma grande inovação porque possibilita sem ônus financeiro ao Estado a regularização das unidades de conservação de domínio público, auxiliando na política de consolidação territorial.”
As falhas do mecanismo
Porém, as aplicações práticas não são simples. Em sua tese, a pesquisadora observou que o mercado de compensação de reserva legal não consegue operar propriamente. A oferta de terras disponíveis dentro de unidades de conservação é baixa, pois muitas estão passando por algum tipo de entrave fundiário. Para a pesquisadora do IEE, isso acontece devido à débil governança brasileira, que acompanha a história do país.
Segundo os dados coletados até março de 2018 pela pesquisa, a oferta atual de terras em unidade de conservação disponíveis para compra correspondia a somente 14,59% das áreas de unidade de conservação do Cerrado. Isso significa que menos de 15% das terras estavam livres de conflito fundiário. Um dado como esse mostra que as terras tupiniquins são territórios muito mais complexos do que se imagina.
Assim, a pesquisadora pôde constatar que o mecanismo de criação de mercado é insuficiente para resolver a questão da regularização fundiária. Um trabalho de longo prazo deve ser feito da área de governança de terras. “A consolidação territorial vai depender muito menos desse mercado do que dos estudos fundiários que devem ser feitos pelo Estado”, conclui Ana Karina.
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