Habitat pode influenciar na evolução de sinais acústicos e visuais em aves

Pesquisa de mestrado testou duas hipóteses para analisar variação de canto e plumagem em pássaros da tribo Formicivorini

O formigueiro-do-nordeste (Formicivora iheringi) é uma das espécies da tribo Formicivorini (Foto: Hector Bottai / Wikimedia Commons)

Os animais comunicam-se por meio de estímulos sensoriais de diferentes tipos: visuais, auditivos, olfativos. Na biologia, existe uma teoria sobre esses sinais sensoriais, a Hipótese de Transferência, surgida a partir de observações de Charles Darwin sobre aves. Ela propõe que exista uma relação conflitante no modo como os sinais se manifestam: quando um aparece com destaque, os demais costumam ser discretos ‒ o que ocorreria devido ao custo energético que representam para o animal, além dos riscos de predação e de parasitismo associados. No caso das aves, em que os principais tipos de sinais são os acústicos e visuais, a regra seria que quando um pássaro tem um canto muito complexo, sua plumagem é simples, e vice-versa.

Em sua dissertação de mestrado, a bióloga Renata Beco testou a validade da Hipótese de Transferência em aves da tribo Formicivorini. Embora existam diversos estudos que analisam essa hipótese, Renata considerou um aspecto que geralmente é deixado de lado: o ambiente. “Na Hipótese de Transferência há um balanço evolutivo entre canto e plumagem, para medir se existe uma correlação negativa, mas testando apenas isso só é possível ver se existe esse padrão e ponto. O que está explicando esse padrão? É interessante ver o papel do habitat por trás”, explica.

Para analisar o papel do meio ambiente, Renata levou em questão outra conhecida teoria, a Hipótese de Condução Sensorial, segundo a qual os sinais sensoriais dos animais estão passíveis à pressão do habitat. Isso significa que o local onde estes organismos vivem pode influenciar no modo como seus sinais serão desenvolvidos ao longo da trajetória evolutiva.

Ao cruzar os dois princípios, a pesquisadora concluiu que nos grupos estudados existe essa influência do habitat, ao mesmo tempo em que apresentam uma correlação negativa em suas medidas de plumagem e canto, confirmando tanto a Hipótese de Transferência quanto a de Condução Sensorial.

Medindo canto e plumagem

Popularmente conhecidos como papa-formigas, os pássaros da tribo Formicivorini fazem parte da Família Thamnophilidae, e não foram escolhidos por acaso. “Pensando nas hipóteses, fui procurar um grupo de aves para estudar e acabei caindo na tribo Formicivorini, porque é um grupo que tem uma certa diversidade, tanto do habitat como da plumagem e canto”, conta Renata.

À primeira vista, os papa-formiga podem parecer bastante semelhantes, mas possuem uma grande variedade de padrões de plumagem. Alguns são inteiramente de uma única cor, outros mesclam mais de uma, e há ainda alguns com diferentes formas de listras ou pintas. O mesmo vale para o canto: apesar de possuírem um canto simples, estes variam bastante em duração, tipo e número de notas.

Para estudar a plumagem dos bichos, a pesquisadora utilizou exemplares da coleção de aves do Museu de Zoologia (MZ) da USP e de outras coleções no Brasil e nos Estados Unidos. Existem muitas maneiras de fazê-lo, e Renata escolheu uma técnica nova, que utiliza fotografias feitas em ambiente com iluminação padronizada.

“Eu tirava fotos dos pássaros de diferentes posições, de barriga pra cima, de lado e de costas. Depois, abria essas fotos num software e ia selecionando as regiões de interesse, ou seja, uma região da cabeça, das costas, das asas, e recebia medidas de cor de acordo com os canais de cores que a câmera tem disponível, o sistema de cores RGB”. Conforme Renata explica, para os pássaros, a comunicação por sinais visuais é mais complexa, uma vez que eles enxergam também o espectro ultravioleta. No caso dos Formicivorini, isso não foi um empecilho, já que eles variam mais em padrões do que em cores. Ao mesmo tempo, isso não descarta o possível papel da coloração, também no espectro ultravioleta, na comunicação deles.

À esquerda, fotos tiradas por Renata de uma das aves estudadas. À direita, as mesmas imagens abertas em software para analisar a plumagem. (Imagens: Renata Beco / Reprodução)

Quanto aos sinais acústicos, foram utilizadas coleções das chamadas bibliotecas sonoras, como a Macaulay Library, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. “Nesse site, as pessoas vão depositando gravações, podem ser pesquisadores ou não, elas fazem uma gravação, dizem qual é a espécie e as pessoas identificam de acordo com o local e horário onde pegou”. Outra dentre as bibliotecas utilizadas foi a do site xeno-canto, que possui conteúdo aberto para downloads, e a Fonoteca, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que possui sons de diferentes animais.

Os sons foram analisados utilizando um outro software, chamado Raven. “Você abre um arquivo sonoro e aparece um oscilograma com as ondas de acordo com o tempo, e também um espectrograma mostrando o que ela está pegando de frequência de acordo com o tempo”. Nesse caso, o programa é utilizado para extrair as medidas de frequência (máxima, mínima e de pico), duração total do canto, número e tipo de notas. “São medidas básicas de canto que usei, pensando no contexto de variação de canto do grupo”.

Por fim, foram analisadas informações do habitat, divididos em expostos e não-expostos à luz solar, e uma característica comportamental típica dos Formicivorini, que é a formação de bandos mistos. Muitas das espécies formam grupos entre si ou com indivíduos de outras espécies e seguem juntos pela floresta para forragear, ou seja, buscar alimento e interagir com outros indivíduos. “Tem espécies nesse grupo que obrigatoriamente formam esses bandos, outras formam eventualmente, e outras nunca. É algo bem interessante, e eu queria ver se isso também tinha algum papel no canto e na plumagem”.

Filogenia e genética

Uma vez reunidos todos os dados, Renata usou como base para os testes uma filogenia, isto é, uma “árvore” esquematizada da história evolutiva dos organismos. Foi importante levar esse fator em consideração para diferenciar as características moldadas pelo ambiente das herdadas pela genética. Há espécies que são diferentes ou semelhantes na plumagem e canto apenas por possuírem maior ou menor grau de parentesco.

Ao total, foram estudados 76 taxons, entre espécies e subespécies dentro da tribo Formicivorini, usando o método dos quadrados mínimos generalizados (PGLS, do inglês Phylogenetic Generalised Least Squares), que testa relações e correlações entre variáveis ‒ no caso, de plumagem, canto e habitat ‒ levando em conta o parentesco dos animais.

Espectogramas das espécies Myrmotherula minor e Formicivora grisea. A primeira tem canto mais curto e com menos notas, porém maior diversidade e tipos de notas. Já a outra tem canto longo e com muitas notas, mas emite apenas um tipo de nota. (Imagem: Reprodução)

Os testes apontaram tanto correlações positivas quanto negativas. “Eu percebi que, dependendo de qual variável de plumagem era testada, as variáveis de duração de canto e número de notas davam sempre uma relação positiva, por exemplo: quanto mais clara a região dorsal, maior era o canto ou maior o número de notas. Mas, quando eu olhava outros tipos de medidas de canto, como os tipos e a diversidade de notas, aí acabava dando uma correlação negativa”, relata a pesquisadora. Desta forma, o próximo passo foi pensar em qual das variáveis melhor representava a diversidade do grupo.

Na tribo Formicivorini, as aves diferem umas das outras principalmente em duração de canto e número de nota. Mas, em questão de elaboração, há muitas espécies no grupo que possuem cantos longos que emitem uma única nota, enquanto outras têm o canto curto, mas emitem várias notas. “Então, concluímos que tipo e diversidade de notas explica melhor a complexidade do grupo”.

Foram justamente estas as medidas que apresentaram correlações negativas com a plumagem. Assim, ficou comprovada no grupo a Hipótese de Transferência, e, conforme os demais testes, também a de Condução Sensorial. Chegando-se a essa conclusão, a pesquisa estimula a discussão para expandir o mesmo método de estudo com outras espécies, ou mesmo testar novamente os Formicivorini, considerando aspectos diferentes dos analisados por Renata, de modo a descobrir novas informações a respeito das características dos animais ao longo da história evolutiva bem como sua interação com o ambiente.

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