Mineralogia analisa pintura mural que resistiu a incêndio

Obra executada por Fulvio Pennacchi em 1954 utilizou técnica de afresco

Croqui da obra Alegoria ao Desenvolvimento Industrial Paulista, de Fulvio Pennacchi. Fonte: Livro Fulvio Pennacchi, de Pietro Maria Bardi, 1980. Editora Raízes

Embora não seja uma área tão conhecida, o trabalho do geólogo é importante na conservação do patrimônio construído, utilizando a mineralogia aplicada para as artes e arqueologia. Dentro desse segmento, Patricia Magon estudou a pintura mural Alegoria ao Desenvolvimento Industrial Paulista, do artista ítalo-brasileiro Fulvio Pennacchi. A obra foi confeccionada em afresco e técnicas afins.

A técnica de afresco utiliza materiais de origem mineral, por isso é importante ser analisada sob a ótica da geologia. Patrícia explica que os minerais podem ser classificados em diversos tipos, com uso adequado para cada finalidade. “Os minerais apresentam características diferentes e, na hora de utilizá-los, essas características irão fazer a diferença. Dependendo da mistura ou das quantidades que você fizer, o produto final será diferente”.

Desde a graduação, a pesquisadora trabalha com análise de minerais. Durante seu estágio na Associação Brasileira de Cimento Portland, Patricia analisava os minerais e suas características para uso na construção civil. No mestrado no Instituto de Geociências, utilizou os conhecimentos em mineralogia aplicada às artes e a arqueologia. “O afresco é uma argamassa de cal (argila + areia) com pigmentos minerais. Não se pode, por exemplo, aplicar um pigmento orgânico, de planta, que vai estragar e mudar totalmente a interação. No afresco tudo utilizado é inorgânico, é mineral”, explica.

Para a pesquisa, foram analisadas cinco amostras, três da pintura mural e duas da parede onde a obra foi executada.  Utilizando um microscópio petrográfico, microscópio eletrônico de varredura e fluorescência de raio X, Patricia conseguiu identificar os materiais, os minerais que compõem a argamassa e os pigmentos, descrever como esses eles interagiram entre si e quais as técnicas que o artista executou para fazer o mural.

O artista e a obra

Fulvio Pennacchi é considerado um dos grandes muralistas da sua época, sendo um dos pioneiros na produção de afrescos no Brasil. Foi integrante do Grupo Santa Helena, composto por artistas como Alfredo Volpi e Mário Zanini.  “Muitas das grandes obras do período do Renascimento foram feitas utilizando a técnica de afresco. Os artistas italianos fizeram vários tratados detalhando como a técnica tem que ser executada, as combinações de materiais e seus resultados. Pennacchi veio da Itália para o Brasil já adulto, trazendo a tradição dos afrescos e seguindo as técnicas aprendidas no seu país de origem”, contextualiza.

A obra mede sete metros por onze metros e foi executada em 1954 sob encomenda do extinto Banco Auxiliar. Em 2009, em decorrência de incêndio no local onde a pintura estava, ela foi removida por engenheiros especializados neste tipo de transporte. O mural se encontra guardado sob posse de um proprietário de galeria e está em processo de restauração. Antes da remoção, após o incêndio, foram recolhidas algumas amostras que estavam soltas e serviram de base para o mestrado da Patricia. Na época do incidente funcionava no imóvel uma loja de autopeças. A obra estava escondida atrás de um grande banner de lona, que funcionou como uma proteção à obra contra o fogo do incêndio.

Loja de autopeças após o incêndio, quando a pintura ficou à mostra. Foto: Walter Tabax / vc repórter

Afresco e suas variações de técnicas

No teto da Capela Sistina, feito por Michelangelo, foi executada esta técnica. “O afresco é um tipo de pintura que a mais antiga está na Grécia, na ilha de Cnossos e tem cinco mil anos. A argamassa do afresco é de cal com areia. A vantagem é que o artista faz a mistura, passa na parede e, utilizando pigmentos minerais, pinta enquanto a argamassa ainda está molhada”, detalha.

A professora Eliane Del Lama, orientadora de Patricia e coordenadora do núcleo de estudos GeoHereditas, já havia estudado outras obras de Pennacchi, como o mural confeccionado na capela do Hospital das Clínicas, pertencente à Universidade de São Paulo. Nele, Eliane identificou o afresco e suas variações de técnicas: vero fresco, mezzo fresco e seco.

Essa classificação é relacionada ao estágio de cristalização da argamassa de cal e a interação com os pigmentos minerais. “Com a interação com a pasta, esse pigmento penetra na superfície e, quando a argamassa seca, o pigmento fica todo por dentro. A cal, quando está hidratada, tem uma composição, o hidróxido de cálcio. A medida que ela vai secando, reage com o gás carbônico do ar, se transformando de hidróxido para carbonato de cálcio, se cristalizando e fazendo com que esse pigmento não saia. É a interação entre os minerais, por isso a geologia e mineralogia aplicada podem ajudar nesta análise”, explica Patrícia.

O vero fresco é considerado o afresco mais fiel, quando o pigmento mineral é aplicado com a argamassa ainda mole; no mezzo fresco, a superfície já começou o processo de cristalização e endurecimento da argamassa, tendo uma aderência mais superficial entre ela e o pigmento; o seco é quando o pigmento foi aplicado com a argamassa totalmente seca, tendo menor interação entre o pigmento e a superfície já cristalizada.

Nas outras obras de Pennacchi, Patrícia explica que a sua orientadora encontrou as três variações de técnica. Das cinco amostras analisadas no mestrado, três eram da pintura e duas da parede. Dentre as amostras do mural, uma foi executada na técnica mais fiel, o vero fresco, e as outras duas em mezzo fresco. “A diferença entre as amostras da parede e da pintura eram visíveis. Nas da parede, encontrei o cimento Portland, nas da pintura, não havia cimento, apenas a argamassa e os pigmentos. Foi muito interessante para mim, pois eu nunca tinha analisado uma parede microscopicamente”.

A geóloga só teve acesso a essas três amostras da pintura, não conseguindo analisar outras partes da obra para identificar a técnica a seco e a presença de outros pigmentos. Nas amostras foram encontrados o azul cobalto (CoAl2O4), vermelho ocre (Fe2O3) e branco titânio (TiO2).”Eu gostaria de analisar mais amostras da obra para identificar outros pigmentos e tentar achar se em alguma parte do mural foi executado a seco. Apenas dois ou três milímetros seriam suficientes para eu identificar a técnica e os pigmentos existentes”.

Patrícia espera que os dados coletados na pesquisa sirvam de apoio ao processo de restauração da obra, bem como contribuir para o aprimoramento dos protocolos de obras artísticas quanto para o registro histórico de técnicas de pintura mural ao longo dos tempos.

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