Anomalias e doenças raras ganham destaque na internet por despertarem a curiosidade dos leitores. Contudo, outras doenças que afetam uma grande parcela populacional, incluindo animais domésticos, não são conhecidas nem pelas pessoas, nem no universo da saúde. “A toxocaríase não é uma doença de notificação compulsória, porém existem profissionais médicos e da área da saúde que não conhecem sobre ela porque não é muito explorado”, conta Gabriela Rodrigues e Fonseca, biomédica pela Universidade Metodista. A pesquisadora é autora da tese Toxocaríase murina experimental: diagnóstico por PCR e comparação, e relata ter pouco contato com a doença até começar a trabalhar com o grupo de pesquisa sobre o verme toxocara no Instituto de Medicina Tropical (IMT) da Faculdade de Medicina da USP.
Algumas enfermidades mais populares, como ancilostomíase, doença de Chagas e dengue, integram o grupo que a toxocaríase está, reconhecido em 2010 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “doenças negligenciadas”. Atingindo lugares esquecidos pelo ‘progresso socioeconômico’, habitados por populações mais pobres, elas possuem prevenção acessível e tratamento de baixo custo, se tornando desinteressantes para a indústria farmacêutica que não se interessa por descobertas para as doenças. O relatório da OMS estimava que cerca de 1 bilhão de pessoas são acometidas pelas doenças tropicais negligenciadas.
Prazer, toxocaríase
A toxocaríase é uma zoonose, ou seja, doença infecciosa que acomete animais, e pode ser transmitida aos seres humanos por eles. Da família dos nematódeos, o ciclo do toxocara passa por seres humanos e se completa em cães e gatos, que são hospedeiros definitivos, isto é, apenas nesses animais o verme se desenvolve até a fase adulta e se reproduz. O nemátodo adulto põe ovos que saem nas fezes de animais domésticos. Esses ovos sobrevivem no ambiente até entrar em contato com o hospedeiro intermediário, o humano. A infecção pode se dar pela ingestão de terra ou barro e pelo contato com o excremento animal e má higienização das mãos. Após engolir os ovos, estes eclodem no intestino humano, e então começam a gerar complicações.
As larvas que entram na corrente sanguínea humana podem gerar duas síndromes zoonóticas principais: a larva migrans visceral e a larva migrans ocular, que consiste na migração entre os órgãos do corpo, atingindo principalmente pulmão, fígado e olhos. Alguns indivíduos afetados podem ser assintomáticos e outros terem reações leves provenientes da resposta do sistema imunológico como febre, tosse e vômitos. Contudo, muitos pacientes podem sofrer de cegueira temporária, aumento dos órgãos atingidos, estrabismos, pneumonia e outros.
Diagnóstico nem tão minucioso assim
O diagnóstico para a verminose pode ser através de biópsia do órgão ou pelo exame de sangue, a partir de testes sorológicos como o Enzyme-Linked Immunosorbent Assay, conhecido como Elisa, e o Western Blot, em que, ambos, se detecta anticorpos IgG anti-toxocara.
Os exames usados para diagnóstico não são completamente eficientes. Gabriela explica, por exemplo, que o método Elisa pode não identificar anticorpos, devido à baixa carga parasitária presente no organismo ou pela diminuição da produção de anticorpos depois de muito tempo da infecção. O que não significa que o paciente não possui o toxocara no corpo.
Há ainda outra problemática. “O Elisa e o Western Blot são métodos bons, porém eles podem dar reação cruzada com outros helmintos, principalmente os que são filogeneticamente semelhantes, como o ascaris”, continua a pesquisadora. No Brasil, é comum pessoas possuírem poliparasitismo, quando o homem pode estar infectado com mais de um parasita, podendo ter ascaridíase e toxocaríase ao mesmo tempo, a título de exemplo, o que exige maior precisão nos exames.
Essa falta de especificidade no diagnóstico pode distorcer os resultados, gerando ‘falsos positivos’.“A gente pode ter resultados de uma pessoa que está com ascaridíase, faz um diagnóstico de toxocaríase e esse resultado dá positivo. Ou ela pode ter os dois, então reações cruzadas ainda ocorrem porque o antígeno usado da toxocaríase tem semelhanças genéticas com outros parasitas”.
À vista disso, sua pesquisa de mestrado tinha por objetivo elucidar as possibilidades de erro presentes nos testes imunológicos já conhecidos e padronizar o diagnóstico por biologia molecular, pela técnica de PCR convencional, comparando os resultados com os testes de Western Blot e Elisa.
“Já diversos trabalhos, por anos na literatura, nos mostra que é possível fazer uma comparação com humanos utilizando roedores, então a gente resolveu utilizar esses animais de laboratório para fazer essa comparação, para ver como funcionava a resposta imune com o passar do tempo, com diversas cargas parasitárias utilizando técnicas já conhecidas para essa zoonose e uma que ainda não tinha sido utilizada para este fim”. O estudo usou 42 camundongos divididos em quatro grupos e inoculados com 5, 50 e 500 ovos larvados. No período de 15, 30, 60, 90 e 120 dias após a infecção foram produzidos soros desses animais para usar nos três testes.
O resultado do mestrado mostrou que ainda há muito para se saber sobre a toxocaríase. A tentativa de diagnóstico por biologia molecular se mostrou ineficiente. “Talvez uma técnica de biologia molecular mais sensível possa identificar, às vezes não. Às vezes durante a passagem da corrente sanguínea não há essa liberação de DNA ou ele degrada e você não consegue detectar. Às vezes a larva pode estar migrando entre órgãos, portanto ela não está na corrente sanguínea e não dá para detectar por soro. Tem várias possibilidades. Umas das que nós exploramos para a PCR é que se há DNA na corrente sanguínea, ele é menor que um nanograma, porque o método consegue detectar até essa medida”.
Outra porta que abriu com a pesquisa foi sobre os métodos já utilizados, que se mostraram ainda os mais eficientes. Avaliando a relação entre tempo e grau de infecção, a tese mostrou diferentes razões de grandezas. É diretamente proporcional a agressividade da inoculação com a detecção de anticorpos, tanto no Elisa quanto no Western Blot.
Todavia, os animais de baixa carga parasitária que apresentaram poucos ou nenhum diagnóstico nos primeiros exames, manifestaram picos de resposta do sistema imunológico. “Eles tiveram, boa parte dos animais, em torno do 60 – 90 dias, uma detecção significativa, mas os de baixa carga parasitária tem uma detecção mais intermitente, que cai depois e não conseguimos mais identificar. Os animais com alta carga já apresentaram bandas de DNA com 15 dias após a infecção, coisa que o grupo de baixa carga não apresentou. O pico foi mais ou menos parecido em ambos os testes. Aos 60 dias de infecção, as duas técnicas apresentaram certo pico, e os animais de alta carga se mantiveram assim”.
Gabriela explica que esse período específico e a mesma intensidade de DNA percebido em todos os grupos de animais mostram uma rota nos estudos sobre a toxocaríase, já que estudos anteriores identificaram o mesmo fator em pessoas e animais infectados pelo verme, demonstrando que ela tem uma importância para o diagnóstico da doença.
A exploração do universo do toxocara não se limita à pesquisadores da saúde humana. Por afetar comumente cães e gatos, profissionais da saúde animal também devem se atentar à doença nos bichos. O verme faz parte dos inúmeros helmintos que os vermífugos exterminam e preveem, mas não basta só limpar os animais. “Há uma falha na questão multiprofissional de ter vários profissionais, além dos tutores e pacientes, no caso cães e gatos, para poder educar ou passar esse conhecimento para os tutores: ‘olha existe essa doença, vamo vermifugar, porque há isso e a doença pode passar para vocês’”.
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