Ceratocone pode estar relacionado à mutação no cromossomo 19

Estudo sobre doença genética que afeta córnea é realizado pela primeira vez com família brasileira

O coçar prolongado dos olhos é o principal fator ambiental do ceratocone. Imagem: Camila Mazzotto

Principal causa de transplante de córnea no Brasil, pouca disponibilidade de doadores do tecido em muitas regiões do país e escassez de informações sobre a ocorrência de mutações que possam levar à doença: esses foram os motivos que levaram Alan Besborodco, aluno de mestrado do Instituto de Biociências (IB-USP), a estudar o ceratocone.

A patologia, caracterizada por uma disfunção na córnea que confere-lhe um aspecto cônico, afeta uma a cada 2 mil pessoas da população geral. “O ceratocone é uma doença rara, mas o número de afetados no Brasil é alto em comparação com outras doenças tidas como raras, e estudá-lo pode contribuir para um melhor planejamento do sistema de saúde na área da oftalmologia, por exemplo”, considera.

Em sua dissertação, Genética de ceratocone: Estudo genético e molecular de uma família brasileira, apresentada em outubro de 2018, Besborodco buscou identificar uma possível variante causal da doença. Para tanto, analisou o genoma, conjunto de todos os genes de um ser vivo, de uma família brasileira com 15 afetados pela patologia. “A família inclui quatro gerações de homens e mulheres de idades variáveis, desde uma criança de 4 anos a um idoso de 60”, explica.

Para que um indivíduo expresse as características observáveis (fenótipo) da doença, deve apresentar não só determinada predisposição genética, mas também fatores ambientais ou comportamentais associados, como o ato de coçar os olhos, a exposição excessiva aos raios UV e o uso inadequado de lentes de contato. O coçar prolongado dos olhos, por exemplo, provoca a liberação de citocinas, mediadores inflamatórios que, em excesso, podem causar a morte celular de ceratócitos, as células que produzem as fibrilas de colágeno da córnea.

Segundo Besborodco, alguns estudos mostram que pacientes que têm o fator genético para o ceratocone, mas não coçam os olhos desde cedo, por exemplo, podem não manifestá-lo. “E não somente os que têm predisposição genética para a patologia deveriam se preocupar quanto ao coçar dos olhos, mas todos os demais, visando evitar inflamações que, em longo prazo, podem prejudicar a córnea”, alerta.

A doença geralmente se manifesta por meio de um astigmatismo irregular e alto grau de miopia, além de sensibilidade à luz (fotofobia) e visão dupla (diplopia). O paciente apresenta alterações na curvatura da córnea, que também tende a diminuir de espessura, o que prejudica a formação de imagens, já que a camada é a primeira onde a luz refrata, isto é, desvia do ar para o olho, quando incide sobre o órgão.

Representação gráfica do ceratocone (em cima) e estágio avançado da doença (em baixo). Créditos: Mol Genet Genomics (2017) e Guedala Oftalmologia

Estudo genômico

A pesquisa, orientada pelos professores Paulo Otto (Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB), Rossen Mihaylov Hazarbassanov (Departamento de Oftalmologia e Ciências Visuais, da Escola Paulista de Medicina – Unifesp) e auxiliada pela professora Regina Célia Mingroni Netto (Laboratório de Genética Humana do IB), analisou a família dos quinze indivíduos afetados por ceratocone por meio de uma metodologia que viabiliza estudar os 46 cromossomos de cada paciente, conhecida como estudo de ligação de amplitude genômica (GWLS). “A partir dessa investigação, constatamos que a variante causal para a patologia deve estar numa região do cromossomo 19”, conta.

Besborodco conseguiu obter uma lista das variantes que poderiam explicar a doença em um paciente tido como representante dos demais, a partir da análise dos resultados de uma técnica que determina a ordem das bases nitrogenadas adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T) da molécula de DNA conhecida como sequenciamento de exoma na parte do genoma que codifica os RNAs mensageiros. Em seguida, comparou esses resultados com bancos de dados de mutações da população brasileira, que são provenientes de indivíduos idosos com saúde excelente e, portanto, não diagnosticados com ceratocone.

“Consultamos os dados do banco ABraOM [Arquivo Brasileiro Online de Mutações], que foi o primeiro banco de dados público de variantes da população brasileira, organizado pela equipe da Mayana Zatz [professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB e coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-tronco]”, conta. A partir dessa comparação, Besborodco verificou quais mutações os pacientes-referência não tinham, e quais mutações o paciente representante da família apresentava, filtrando as variantes que poderiam e as que não poderiam estar relacionadas à doença.

“Foram dois estudos em paralelo: um que identificou a região do cromossomo que pode estar relacionada à doença, e outro que sequenciou o exoma e encontrou as variantes”, explica. Cruzando os resultados das duas análises, a pesquisa identificou três variantes suspeitas que poderiam explicar a doença, e constatou que é aproximadamente mil vezes mais provável que a variante causal esteja numa região do cromossomo 19 do que o contrário a região cromossômica apresentou LOD Score, ou logaritmo da probabilidade, igual a 2,98, valor próximo do que é considerado o limite de significância para poder dizer que uma variante se encontra em determinada região de um cromossomo.

“A nossa descoberta em relação ao cromossomo 19 associado ao ceratocone pode ser um achado único nessa família, ou pode ser que observemos isso em outros casos, e então os resultados poderiam beneficiar indivíduos afetados pela doença para além dos estudados”, considera.

As variantes suspeitas ainda serão testadas nos demais familiares do estudo a partir de recurso conhecido como método de Sanger, o qual permite que apenas o gene que está sendo estudado seja amplificado e marcado com aminoácidos fluorescentes, que, por sua vez, podem ser lidos por um sequenciador. Ao fim das etapas de laboratório, os 15 membros da família estudada serão convidados para sessões de aconselhamento genético, nas quais terão acesso aos resultados da pesquisa e poderão discutir as implicações da doença.

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