Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável: este é o segundo dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, plano da Agenda 2030, adotada em setembro de 2015 pelos países-membro da organização, dos quais, o Brasil. Entre as propostas relacionadas a esse fim, estão a garantia de sistemas sustentáveis de produção de alimentos e a implementação de práticas agrícolas robustas que, de acordo com o documento, “aumentem a produtividade e a produção, ajudem a manter os ecossistemas, fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças do clima, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres”.
Com o título Como uma pequena erva daninha pode nos ajudar a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável? (How can a small weed help us achieve the Sustainable Development Goals?), Renata Callegari Ferrari, doutoranda do Laboratório de Fisiologia do Desenvolvimento Vegetal do Instituto de Biociências da USP, apresentou parte da pesquisa de seu doutorado no congresso científico internacional “Tsukuba Global Science Week” da Universidade de Tsukuba, em setembro de 2018. A pesquisadora recebeu o prêmio Young Scientist Award do evento, cujo tema foi Impulsionando o Desenvolvimento Sustentável (Driving Sustainable Development).
Previsto para conclusão em 2020, o trabalho de Renata explora o funcionamento de dois mecanismos de concentração de CO2 num mesmo organismo vegetal, a Portulaca oleracea, também conhecida como beldroega. Caracterizada por apresentar folhas suculentas, a planta é capaz de realizar as vias fotossintéticas C4 e CAM em uma mesma folha a depender das condições ambientais. Essas estratégias, por sua vez, promovem o aumento da resistência do organismo à seca e a altas temperaturas, por exemplo.
“Pensava-se que os mecanismos C4 e CAM eram independentes e incompatíveis, ou seja, se a planta evoluísse um, ela não evoluiria o outro, porque a coexistência dos dois no mesmo organismo não seria possível. Mas, a Portulaca consegue fazer isso: ela é C4 quando está bem hidratada e muda para o CAM quando está em déficit hídrico”, explica Ferrari.
A maioria das espécies terrestres de vegetais realiza a fotossíntese C3, que, de acordo com a pesquisadora, é altamente influenciada pela disponibilidade de gás carbônico no ambiente. As vias fotossintéticas C4 e CAM, por outro lado, promovem o aumento da concentração de CO2 dentro da folha das plantas que as realizam, mantendo a fotossíntese eficiente nesses organismos quando em condições ambientais desfavoráveis.
Esses dois mecanismos representam adaptações ecológicas distintas, sendo que o C4 garante à planta um melhor desempenho fotossintético em altas temperaturas e intensidades luminosas, ao passo que o CAM aumenta a tolerância à seca e provê um uso mais eficiente da água. O milho e o cactos são exemplos de organismos vegetais que adotam as vias C4 e CAM, respectivamente.
“O interessante dessas duas adaptações é que o mecanismo bioquímico, ou seja, as enzimas e genes necessários para essas vias acontecerem, está presente em todas as plantas, mas apenas em alguns grupos a expressão desses genes foi modificada de modo a atuar na fotossíntese”, explica Ferrari.
Os mecanismos C4 e CAM podem ser considerados síndromes, visto que são compostos por um conjunto de adaptações bioquímicas, anatômicas e fisiológicas. O caso da Portulaca oleracea é caracterizado pela pesquisadora como o exemplo extremo da conectividade entre essas duas síndromes. Ela explica que já foram observados outros mecanismos acumuladores de carbono ocorrendo de forma combinada em organismos vegetais, mas o comportamento das vias C4 e CAM do jeito facilmente alternável como ocorre na P. oleracea, é uma novidade. “Meu projeto está tentando descobrir se ela liga um mecanismo e desliga o outro, ou se ela mantém os dois ativos. Parece que ela liga um e desliga o outro, mas isso ainda não é uma certeza”, pontua.
Manifestação dos ciclos C4 e CAM
A P. oleracea é distribuída em diferentes regiões do mundo, sendo considerada uma espécie cosmopolita. A primeira etapa da pesquisa de Ferrari, portanto, consistiu em verificar se todas as subespécies de P. oleracea, que ocorrem em lugares com condições ambientais contrastantes, conseguem ser induzidas ao CAM da mesma maneira.“Temos sementes da Áustria, da África do Sul e do Chile, por exemplo, e queríamos comparar se todas elas eram capazes de alternar do ciclo C4 para o CAM”, explica.
Considerando o fato dessas subespécies serem oriundas de ambientes contrastantes, a pesquisa levantou a hipótese de que as mesmas expressariam o CAM de formas diferentes – isto é, haveria certa flexibilidade na manifestação do mecanismo –, ou não o expressariam, se não tivessem passado por uma pressão evolutiva. “Esperava que o CAM apresentaria uma variação muito mais drástica entre as subespécies que cresceram em ambiente úmido e as que cresceram em ambiente árido, mas vimos que todas elas são capazes de sair do C4 e entrar no CAM, ainda que em graus diferentes”, explica.
A partir disso, a pesquisadora sequenciou o transcriptoma de folhas e caules de P. oleracea nas duas condições contrastantes para identificar os componentes chave dos mecanismos C4 e CAM, e elementos regulatórios responsáveis pelo controle das transições entre os tipos fotossintéticos. “O foco dessa parte do projeto é entender a expressão gênica de quando a planta sai de um metabolismo fotossintético e vai para outro, ou seja, quais genes ela ativa e quais ela desativa”, explica.
Ferrari espera que a evolução do ciclo C4 a partir de um organismo que já realizava CAM pode ter ocorrido com o recrutamento de genes específicos para C4, e busca, também, entender os cenários que envolvem as trocas de genes. “As plantas que expressam o C4 têm genes que levam à produção de determinadas enzimas que também são presentes nas que expressam o CAM, ainda que essas tenham genes diferentes. Então, nossa hipótese significaria que, em alguns casos, a P. oleracea pode estar recrutando genes diferentes, ou seja, ela tem dois genes para a mesma coisa, mas cada um está ativo em um dos metabolismos”. Espera-se também que os genes específicos para C4 sejam regulados por sinais ambientais ou endógenos diferentes daqueles envolvidos na regulação do CAM.
A terceira parte da pesquisa, em atual andamento de forma conjunta a primeira, envolve explorar os eventos de sinalização responsáveis pelos ajustes na expressão do CAM em caules e folhas de indivíduos diante de variações na disponibilidade hídrica. Isto é, trata-se de estudar o comportamento da planta nos primeiros dias em que se instala o período de seca. O foco de estudo da pesquisa, no que diz respeito aos possíveis sinais emitidos pela planta, são os hormônios vegetais. “A questão a se observar é: como a planta vai fazer o CAM ser ligado?”, explica.
Possíveis aplicações
De acordo com a pesquisadora, já existem esforços internacionais, como os de alguns grupos norte-americanos, visando a introdução das síndromes C4 e CAM em cultivares C3, como no arroz, por exemplo. “Apesar de não se tratar simplesmente de uma questão de introduzir genes, já que ligar ou desligar um gene influencia milhares de outros fatores num organismo, observamos uma tentativa de aumentar o rendimento e a eficiência das plantações para lidar com problemas como a fome e as mudanças climáticas, por exemplo”, explica.
Ferrari acredita que a elaboração do mapa genético de como as duas síndromes se conectam pode viabilizar a tomada de iniciativas futuras de bioengenharia que consigam manipular esses mecanismos em espécies de maior interesse econômico. “Pensando no milho, por exemplo, que é uma superespécie de interesse agrícola e já realiza o ciclo C4, poderia-se pensar na possibilidade de fazer com que, na ausência de água, ele pudesse entrar no CAM e se manter vivo, o que evitaria a perda de safras de milho em condições ambientais de seca”.
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