Sem intenção de engravidar, mulheres estão deixando de tomar anticoncepcional porque querem um corpo “natural”, ou seja, sem influência de hormônios sintéticos. Além do medo de desenvolverem alguma doença, os principais motivos para parar de tomar a pílula são perda da líbido, dores fortes de cabeça, enjoos, retenção de líquido e depressão. Os dados são resultado da dissertação de mestrado ‘Adeus, hormônios’: concepções sobre corpo e contracepção na perspectiva de mulheres jovens, defendida por Ananda Cerqueira na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A pesquisa tinha como objetivo compreender uma espécie de movimento, que ocorre principalmente na internet, de mulheres tomando ciência dos efeitos dos anticoncepcionais e interrompendo o uso.
Segundo a pesquisadora, o método utilizado foi etnografia no ciberespaço, uma espécie de “pesquisa de campo” no Facebook. Isso porque o campo era um grupo na rede social, chamado Adeus, hormônios: contracepção não-hormonal, composto por “pessoas com útero” que estavam no processo de parar de tomar pílula, mas não sem deixar de assumir outro método contraceptivo. Por ser fechado e secreto, Ananda solicitou permissão às administradoras do grupo para fazer a análise dos posts publicados, o que foi concedido, contanto que ela não publicasse nenhum nome nem printscreen. As mediadoras também forneceram à pesquisadora dados que permitem compreender como é o público do grupo: em sua maioria são mulheres das regiões sudeste e do sul do país, jovens, na faixa etária de até 34 anos. “Não é possível dizer que essa discussão não está entre as camadas mais populares e no nordeste brasileiro, mas é possível inferir que de fato trata-se de um movimento majoritariamente composto por mulheres jovens e escolarizadas, do sul e do sudeste”, explica a antropóloga.
Foram analisados posts pelo período de um ano, entre 2016 e 2017. Foi possível perceber que essas mulheres estavam abdicando do controle hormonal, mas em busca de um ‘autocontrole’ e de conhecer a natureza de seus corpos. Portanto, outros métodos contraceptivos eram utilizados, como preservativo, DIU de cobre, método sintotermal e a conhecida tabelinha, agora disponível em aplicativos.
Pílula torna-se “vilã”
Desde que a pílula existe, sabe-se que ela pode trazer malefícios. O mais citado é a trombose, que, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), têm de 4 a 6 vezes mais chances de acometer uma mulher que toma anticoncepcional do que uma que não toma. Mas por que as mulheres estão parando só agora? Para Ananda, é difícil encontrar um ‘ponto de partida’: “São mulheres tomando mais consciência sobre seus processos. Há um movimento de viver natural que a gente tem visto muito nas redes sociais, como o uso de produtos não testados em animais, comida natural orgânica, valorização do cabelo sem química. Na minha visão, tudo isso se relaciona. Pela análise dos discursos, não eram coisas descoladas. É um grupo de pessoas que está tentando aliar a crítica à forma de viver”, afirma. E a pesquisadora ressalta a influência das redes sociais, responsáveis por democratizar um tema então tabu.
Também ligado ao movimento está uma espécie de descredibilização da “medicina tradicional”, o que não era tão comum até pouco tempo atrás. No grupo, por exemplo, as participantes publicavam receitas médicas e pediam opiniões sobre aquele medicamento prescrito, buscando sempre por aqueles “mais naturais” ou não farmacológicos. “Esse movimento equilibrou a balança entre o saber médico e o paciente. Relacionamos com um conceito chamado paciente expert, que é aquele que vai atrás das informações e questiona, quer entender o que ele está fazendo. Não quer fazer tratamento de olhos fechados”, explica Ananda.
Entretanto, assim como em outras esferas sociais, há uma polarização entre mulheres que deixaram de tomar anticoncepcional versus mulheres que ainda tomam. Ou seja, em alguns posts foi possível verificar um tom moral nos discursos, como se as mulheres que estivessem deixando de tomar fossem mais ‘evoluídas’, enquanto as que ainda tomam fossem ‘preguiçosas’, preferindo consumir um medicamento que sabidamente lhes fará mal. “Então, ainda assim a gente é julgada, como tudo. Se usamos pílula somos julgadas, se temos filho, cesárea não pode, se damos a mamadeira, somos péssimas mães. Acho que já chega de julgamentos sobre o que as mulheres fazem. É sair de uma submissão que a gente viveu por muitos anos para ir para outra”, afirma a pesquisadora.
Para a antropóloga, a pesquisa é importante primeiramente por trazer luz a esse assunto, que, por ser recente, não é muito tratado. Além disso, apresenta às mulheres a possibilidade de não tomar pílula. “A informação é muito importante. Informação cuidadosa e o menos enviesada possível. E foi tudo isso que me motivou a fazer a pesquisa e trazer esse processo para o debate”.
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