Consórcios públicos de saúde do Ceará suprem vazio assistencial

Parceria entre estado e municípios obtém sucesso na promoção de serviços de média complexidade pelo SUS, aponta pesquisa da EACH-USP

A estratégia de implantação de consórcios públicos verticais de saúde, no Ceará, conseguiu melhorar a capacidade de oferta de serviços no âmbito regional e vem servindo de modelo para outros estados, a exemplo da Bahia. É o que aponta a dissertação produzida por Karine Sousa Julião para a obtenção do título de mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP.

Ela consiste em um estudo de caso que utilizou três fontes de dados principais: pesquisa bibliográfica, documental e entrevistas. O levantamento da bibliografia teve como objetivo mapear a discussão teórica sobre relações intergovernamentais em arranjos federativos, com o foco na política de saúde e no papel do governo estadual. De forma mais específica, também foi estudado o pensamento sobre cooperação intergovernamental via consórcios e foram identificadas categorias analíticas para se pensar a cooperação intergovernamental na saúde.

As entrevistas, por sua vez, possibilitaram a captação de informações a partir de sujeitos chave para a idealização dos consórcios verticais de saúde. Elas foram realizadas em três microrregiões participantes do sistema de consórcio no Ceará: Baturité, Maracanaú e Juazeiro do Norte. A partir delas, a pesquisadora também pôde compreender melhor a relação estado/município na operação do arranjo.

Já a pesquisa documental se mostrou útil no sentido de confirmar ou refutar as informações captadas durante as entrevistas. Como explica Karine: “Os documentos demonstraram como a relação se institucionalizou formalmente. Com eles, eu consegui fazer uma comparação entre os discursos e os registros”.

A pesquisadora explica que os consórcios são uma forma de cooperação regional que surge com o objetivo de combater os efeitos negativos da descentralização municipal. A natureza vertical do consórcio cearense foi o diferencial que motivou a escolha de Karine pelo caso. Esse tipo de arranjo se difere dos convencionais por ter tanto o estado, quanto os municípios na posição de membros permanentes e atuantes da parceria.  

Segundo ela, essa relação interfederativa exige que haja interdependência, mas também autonomia e, portanto, deve equilibrar os interesses locais e os que partem do governo estadual, além de combinar a liberdade para o exercício das responsabilidades individuais de cada participante e a ação coletiva para o desenvolvimento de objetivos em comum.

A pesquisa com base no caso do Ceará mostrou que o nível de institucionalização dos processos decisórios é um dos pontos que contribuem para a promoção desse equilíbrio. Outro aspecto mencionado é a sobreposição dos espaços de deliberação próprios do SUS e outros ligados aos consórcios, isso porque essa sobreposição provoca o encontro e o diálogo contínuo entre os atores governamentais. No caso estudado, os principais espaços de articulação decisória dos consórcios são um misto da estrutura organizacional interna dos consórcios, arranjos institucionais do sistema de saúde cearense e arranjos do sistema de saúde nacional.

A pesquisadora aponta que os governos estadual e municipal assumiram funções diferentes nos momentos de implantação e execução do consórcio que formaram. Segundo ela, na primeira fase, o governo estadual teve o papel de idealizador da estratégia de consórcios. Ele articulou argumentos políticos e econômicos para convencer os governos locais a aderirem a ideia e custeou a construção das Policlínicas e dos Centros de Especialidades Odontológicas que seriam gerenciados pelos consórcios. Em contrapartida, os municípios não teriam atuado  de forma significativa, pois ainda estavam considerando os custos e os benefícios de sua participação nesse novo sistema.

Na fase de execução, contudo, os municípios exerceram o papel fundamental de manter cada consórcio alinhado com as demandas regionais. Eles disponibilizavam as informações sobre o perfil epidemiológico municipal e apontavam quais eram as reformulações necessárias para que os serviços prestados resultassem em uma boa relação custo/benefício para os consórcios. Enquanto isso, o governo estadual assume o papel de coordenador. Ele atua como criador de normas, articulador federativo e indutor técnico e financeiro. Em conjunto e de forma proporcional às suas capacidades, os dois entes foram responsáveis pelo financiamento dos consórcios.

O estudo identificou que houve certo grau de incrementalismo no processo de descentralização do sistema de saúde do Ceará. Isso significa que a atual solução do modelo de consórcios está relacionada com ações implementadas anteriormente. Ela, inclusive, se beneficiou de aspectos que foram se consolidando ao longo dessa trajetória.

Karine afirma que o Ceará sofreu três principais processos de descentralização: a implantação do Programa de Agentes de Saúde, o processo de microrregionalização e a implantação do PROEXMAES, a qual os consórcios estão vinculados.

O processo de continuidade que caracteriza essa descentralização é descrito pela pesquisadora da seguinte forma: o Programa Agentes de Saúde consolidou o significado de descentralizar serviços de saúde do governo estadual para os municípios. Descentralizar significou “o governo central no local”, como cunhou a pesquisadora norte-americana Judith Tendler, que realizou um estudo clássico sobre o Ceará.

No processo de microrregionalização, o governo estadual se beneficiou dessa lógica de descentralização para coordenar o processo de regionalização no estado. Ele passou a estar presente em cada microrregião de saúde com a fim de de auxiliar os municípios.

Segundo a pesquisadora, os governos municipais sabiam da necessidade de se trabalhar na lógica regional e administrativamente a microrregionalização já estava implementada, porém as regiões continuavam com vazios assistenciais.

Nesse cenário, os consórcios públicos de saúde vêm para ajudar a preencher o vazio regional e manter o governo estadual no papel de coordenador do processo de regionalização da saúde. Ao descrever tal processo, ela define que a escolha pelos consórcios foi um misto da trajetória institucional da política de saúde no Ceará e fatores conjunturais”.

Apesar de terem sido uma política bem sucedida, os consórcios carregam limitações. Karine revela que, segundo a perspectiva dos entrevistados para a pesquisa, eles ainda não ofertam serviços em escala necessária para sanar as demandas reais. Ela explica que os consórcios ofertam apenas serviços de média complexidade, ambulatoriais e eletivos. Isto é, procedimentos de saúde que não precisam de internação e que são devidamente programados, por não possuírem caráter de urgência ou emergência.

Portanto, os vazios assistenciais persistem, não por ineficiência do modelo de cooperação, mas pela própria lógica de estruturação do SUS e pelas dificuldades financeiras que o Sistema Único de Saúde vem enfrentando nos últimos anos.

A pesquisa mostra que o sistema de consórcios de saúde do Ceará foi benéfico por diversas razões. Ele criou, por exemplo, uma relação entre estados e municípios que permite a melhor interpretação das normatizações federais pelos governos a nível municipal, uma vez que o estado age como tradutor das diretrizes federais para a linguagem da burocracia dos governos locais. Além disso, Karine ressalta que essa relação mostrou ter potencial para promover, por si só, inovações de políticas públicas mais alinhadas com as demandas locais.

Mas isso não significa que o trabalho de desenvolvimento do modelo está acabado. A pesquisadora também aponta uma dificuldade a ser enfrentada: “O principal desafio da relação entre estado e municípios é a principal questão de todas as relações intergovernamentais em arranjos federativos. Consiste em equilibrar os valores cooperativos a fim de alcançar objetivos em comum e, ao mesmo tempo, preservar a autonomia das esferas governamentais, resguardando espaço para inovações políticas adequadas às condições locais”.

 

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