Pesquisadora analisa como a coesão social impacta as democracias

Erika Medina, do Instituto de Relações Internacionais da USP, avaliou a relação em diversos níveis

A caminhada para a democracia é objetivo de muitas sociedades na História, e a coesão social é importante para isso (Fonte: Pixabay)
A caminhada para a democracia é objetivo de muitas sociedades na História, e a coesão social é importante para isso (Fonte: Pixabay)

Em qualquer época da nossa História, uma democracia de qualidade faz diferença na vida dos cidadãos e não são poucos os episódios de luta por ela. Tentar definir uma democracia de qualidade e os fatores que a configuram e levam a ela, portanto, é fundamental para que seja alcançada. Nesse sentido, buscar essas explicações foi o objetivo de Erika Medina em tese de doutorado para o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP). Para a pesquisadora, que fez uma análise em variados níveis, um dos pontos mais imprescindíveis é a coesão social.

Medina escolheu fazer sua avaliação em três níveis: global, regional e local. No nível global, utilizou um modelo que vincula os conceitos de coesão e democracia em relação a 118 países — O Bertelsman Stiftung’s Transformation Index (BTI). O indicador analisa e avalia como os países em desenvolvimento e os países em transição estão se conduzindo a mudança social em direção à democracia. Os especialistas dos países avaliam até que ponto um total de 17 critérios foram atendidos para cada um dos 118 países. Erika buscou fazer tanto uma análise quantitativa quanto qualitativa. A nível regional, observou e comparou o  Leste Europeu e a América do Sul. Já localmente, observou o caso da Venezuela — país onde nasceu e uma de suas principais inspirações para estudar o tema diante da complicada realidade que o país vive.  “A Venezuela já foi conhecida como uma das democracias mais sólidas da região. Eu pensei: não é possível que tenhamos uma democracia nessa situação. Então, vieram as questões: o que é uma democracia com qualidade e como avaliar isso?”, diz.

Em entrevista à AUN, Medina explica o que seria a coesão social, ressaltando que é um tema complexo com diversas interpretações. Diz que é algo que deve “ser interpretado em dois níveis: confiança entre os autores que conformam uma sociedade e senso de pertencimento”, isto é, sentir que você faz parte de uma comunidade e de suas interações. “Também há ideia de explorar o capital social”, acrescenta. “Uma sociedade coesa é capaz de tudo. As sociedades mais avançadas são aquelas que têm gerado essa confiança, têm promovido capital social e, em consequência, geram desenvolvimento”, diz, ressaltando a importância dessa variável para a democracia. Para exemplificar políticas públicas que visam essa maior coesão, Medina menciona: “Há políticas de promoção de culturas, de valorização de tradições locais, de educação inclusiva”, e políticas que visem atingir toda a sociedade, e não apenas grupos específicos ou privilegiados. A confiança nas entidades do governo também é importante, além de condições de partida iguais para todos os cidadãos em áreas como a educação.

A nível global, na primeira parte da tese, a pesquisadora analisou os países com o indicador, que avalia vários aspectos a partir de um levantamento de dados no Transformation Index,  e adicionou outras variáveis como o PIB e conflitos armados (nessa última, utilizou dados do Peace Research Institute), concluindo que há de fato o impacto da coesão para a democracia. Porém, faz uma ressalva: “É complicado medir, são ciências sociais, depende de muitos fatores e não é algo que se pode medir com total precisão.” Nas ciências sociais, humanas, sempre deve-se lembrar que muitas vezes provam-se correlações e não causalidades diretas. “É muito complexo falar que é 100%, que é preto e branco, sempre temos que falar em escalas de cinza. Mas existem approaches [aproximações] a que se podem chegar para ter algum tipo de avaliação”, diz a pesquisadora.

Na análise do nível regional, na comparação entre Leste Europeu e América do Sul, Medina quis observar os desenvolvimentos distintos de duas regiões que sofreram grandes transformações sociais nos anos 90 — e, nesse sentido, notou que o Leste Europeu apresentou maiores avanços em indicadores econômicos e sociais. Mas lembra: “O Leste Europeu agora está avançando com as devidas proporções. São sociedades que estão mais estáveis em comparação com a nossa região, que sofre muito com a instabilidade.”. A pesquisadora acrescenta: “eles deram um impulso muito importante a políticas públicas que trabalham com inclusão. Fizeram um investimento grande quando da formação da União Europeia, tiveram recursos, são outros contextos, temos que avaliar tudo isso com as devidas proporções”. E conclui: “É um exemplo de sucesso em políticas públicas visando coesão social, mas tiveram uma estrutura totalmente diferente em termos econômicos”. Sobre a América do Sul, pontua que não temos um mecanismo de integração regional de forma completa, e muitos dos políticos visam mais resolver temas de urgência do que trabalhar nessas políticas em longo prazo.

Localmente, analisando o caso da Venezuela, Medina considerou importante avaliar a atuação de organizações da sociedade civil na construção da coesão social. “Na época em que fiz a coleta de dados, as redes de trabalho entre essas organizações da sociedade civil tinham ficado mais fortes”, explica a pesquisadora. “Elas recorreram ao fortalecimento das redes entre si e, portanto na coesão do trabalho, no senso de pertencimento e em como esse trabalho conjunto ia gerar resultados maiores se fosse implementado”, diz. “Sabiam que a única forma de fazer uma mudança no que estava acontecendo era trabalhar de forma conjunta, intercambiando informações, de forma conjunta. Cada uma trabalhava temas diferentes”, explica.

Medina pontua que, diante de tantos problemas, a sociedade venezuelana apresentaria-se desagregada, e a sobrevivência torna-se, muitas vezes, fator primordial. “Tem-se uma sociedade completamente difusa, no sentido de que não se sente parte de uma coisa, porque sabe que há setores que são privilegiados, e o resto da população depende de como vai avançando a situação: que pode mudar de um dia para outro”, explica a pesquisadora. “Você sente essa instabilidade. É um desgaste total da população, a qual, logo, não tem tempo para pensar em como melhorar as condições, como ter uma democracia com qualidade, se está pensando simplesmente na sua sobrevivência. E uma sociedade não pode estar baseada na sobrevivência”, diz.

A coesão social e o senso de pertencimento, logo, são importantíssimos para que uma sociedade busque viver em uma democracia de qualidade cada vez maior. “Temos que trabalhar para gerar relações fortes entre os indivíduos que formam uma sociedade. Mas também, eles precisam de ferramentas para que consigam fazer isso” diz Medina. Ela explica: “Todo esse trabalho que fiz foi nesse sentido de que são necessárias políticas de inclusão, de medidas que gerem isso. Para mim, a chave é o senso de pertencimento do ser humano. Se você tem isso, pode alcançar coisas incríveis”.

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