O patrimônio histórico edificado com terra no estado de São Paulo está ameaçado. Em decorrência do desconhecimento, da degradação e da ausência de políticas públicas, diversas construções sofrem com o abandono. Muitos as enxergam apenas como ruínas e não as imaginam como elementos da cultura local.
No intuito de chamar a atenção da sociedade para a importância histórica e científica desses bens materiais, entre outros fatores, o professor Andrea Cavicchioli teve uma ideia. Por meio do Programa Ano Sabático, do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP), o químico propôs a construção de um Atlas da Arquitetura em Terra no estado de São Paulo.
Livre-docente pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP), o pesquisador se interessou pelo tema de modo tardio. O primeiro contato se deu através de uma pesquisa que fizera sobre o impacto de mudanças climáticas em patrimônio construído no Vale do Paraíba. Ao perceber a quantidade de edificações em terra existentes, passou a se sensibilizar com o assunto.
Contexto brasileiro
A Arquitetura com Terra (AT) abarca uma série de expressões construtivas. A efetivação, as matérias-primas e as singularidades locais impactam de modo profundo as características finais. No geral, caracteriza-se pelo não processamento e cozimento da terra.
De acordo com Andrea, três grandes categorias se destacam no Brasil: taipa de pilão (monolítica), adobe e pau-a-pique. Na primeira, as estruturas são “resistentes, robustas, grossas e duradouras”, construídas de uma vez só. Na segunda, “blocões” secos ao sol, feitos em etapas, formam os muros. E, no último, as paredes servem como divisórias, sem a função de sustentação, pois são constituídas por “entrelaçados de madeiras preenchidos com barro”.
O emprego dessas técnicas no Brasil predominaram até o século 19. Fruto da herança portuguesa, alastrou-se nas mais variadas áreas. No que diz respeito ao estado de São Paulo, vale a pena ressaltar algumas singularidades. Tanto em manifestações arquitetônicas importantes (relacionadas aos jesuítas, bandeirantes e personagens do ciclo cafeeiro) quanto em espaços de tradição popular (como no Vale do Ribeira, por exemplo), essas técnicas são percebidas.
A capital paulista não ficava de fora. Segundo o professor, até o último quarto do século 19, São Paulo era constituída por taipa e pau-a-pique. Não à toa, em alguns textos, era chamada de “cidade de barro”.
“O que permaneceu em São Paulo ainda são construções feitas de taipa, justamente pelo porte. Quase sempre igrejas, alguns casarões e restos de fazendas. Nós perdemos muitas igrejas no século 20 porque elas foram modernizadas. Por exemplo, a Igreja de São Bento e a própria Catedral da Sé”, disse.
Atlas
A compilação do Atlas se dará por intermédio do cruzamento de dados georreferenciados, isto é, de posição, dimensão e forma. Assim, os tipos de técnica, os períodos de realizações e as localizações das construções serão esboçadas nos materiais.
Para obter o levantamento das centenas de informações necessárias, o pesquisador não só visitou inúmeras regiões do estado como contou com o apoio de diferentes atores locais. “As pessoas tendem sempre a abraçar as coisas e trazerem contribuições para nós. Geralmente, quando nos recebem, acham que, a partir disso, poderemos proporcionar meios e ferramentas para a preservação. Esse é o intuito. Pode ser que isso não seja o resultado imediato.”
É importante destacar que, além dos conceitos, uma série de amostras foram obtidas nessas visitas. Adobes de edificações em reforma (ou destruídas) e fragmentos disponibilizados por alguns proprietários correspondem a parte desses materiais.
No futuro, Andrea pretende criar a Taipoteca, nome sugerido pelo professor Paulo Saldiva, que funcionará como um acervo oficial para análises químico-físicas dos objetos. “Ainda não pensei onde poderia ser o local de conservação definitivo.”
Prerrogativas
Conforme o livre-docente, ao preservarem as edificações, as pessoas contribuem também para os ganhos imateriais. Dessa maneira, técnicas e conhecimentos não escritos de determinados períodos e espaços poderiam ser notados. A presença de óleo de baleia em construções de regiões nas quais não era produzida, por exemplo, deixa claro aspectos como logística, organização e rotas comerciais daquelas sociedades.
Em virtude dos inúmeros benefícios históricos, culturais e científicos associados à manutenção dos patrimônios com terra, a importância de sua defesa é clara. Andrea Cavicchioli espera que seu trabalho seja fundamental na garantia de acessibilidade de todas as esferas da sociedade em relação à temática. Isso é válido, do mesmo modo, no quesito governamental.
“A esperança é que o nosso projeto sirva para ajudar os órgãos ligados à promoção e à preservação do patrimônio histórico construído (especificamente aquilo que é feito de terra) a terem uma postura mais construtiva. A ideia de tudo isso é afirmar a questão da herança da Arquitetura com Terra como nossa, que precisa ser evidenciada, valorizada e conservada.”
Faça um comentário