Fragilidade dos Estados na África Subsaariana interfere diretamente nos conflitos da região

Fortalecer as estruturas desses países é o mais importante, apesar da ideia vigente defender o desenvolvimento como fator único para a paz

Durante sua pesquisa, Daniel Duarte visitou diversas localidades da África Subsaariana, incluindo a cidade de Chipata, na Zâmbia, retratada na foto acima. Imagem: Daniel Carvalho

Por anos a África tem sido lembrada como um continente em completo caos, marcado por guerras, fome e miséria, e cujas esperanças de melhorias são irrisórias. Todas essas mazelas foram associadas ao subdesenvolvimento dos países desse continente de tão ricas culturas. Contudo, essa realidade caótica está mais relacionada à própria estrutura e estabilidade do Estado do que ao próprio desenvolvimento desses países. É o que aponta Daniel Duarte Flora, que defendeu recentemente a tese de doutorado “Falência de Estados na África Subsaariana: uma questão de autoridade” primeira sobre o continente do programa de Doutorado do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

Em seu estudo, o pesquisador partiu da hipótese que a baixa autoridade estatal, isto é, a presença pouco efetiva do Estado em seu território, era o fator mais relevante na ocorrência de guerra civis e de falência de Estados momento no qual a estrutura estatal deixa de cumprir suas funções básicas e o país é tomado por ondas de violência se comparado a variável do desenvolvimento e subdesenvolvimento dos países da África Subsaariana. “Eu não sei se a África é excepcional nesse sentido, mas ela está aí para mostrar que subdesenvolvimento não necessariamente gera guerras”, afirma Daniel.

O resultado é relevante pois ainda se impera atualmente a ideia de que o desenvolvimento traria por si só a paz. Essa noção vigente não apenas no âmbito acadêmico mas também do senso comum, segundo o pesquisador, representa muito mais os anseios políticos de diversos atores do que a realidade dos fatos. Para Daniel, essa variável é até mais relevante que a própria explicação baseada nas disputas e supostas incompatibilidades de etnias, tão comum em vários círculos de discussão.

O pesquisador conta que o principal motivo que o fez estudar o assunto foi uma grande insatisfação com todas essas explicações, em meio a um cenário de inúmeras outras variáveis. “Tudo pode influenciar a situação desses países, mas alguma coisa tem que determinar. E o que era essa coisa?”, questionou Daniel à época. Ele relembra também acontecimentos que potencializaram ainda mais seu interesse pelo tema. Um desses foi sua participação em uma simulação da ONU em sua graduação na PUC-SP, na qual representou a Etiópia. Daí surgiu seu interesse pelo continente africano, percebido no tema de seu TCC, que concentra-se na Etiópia, e mestrado, voltado para conflitos no Chifre da África. Daniel descobriu ainda a história de seu tataravô, que esteve na Etiópia quando era soldado do exército italiano, o que também foi um impulso para estudar o tema.

Foto tirada pelo pesquisador na cidade de Lalibela (Etiópia). Imagem: Daniel Carvalho.

O processo de pesquisa

Para desenvolver sua pesquisa, Daniel analisou os dados de 44 países da África Subsaariana fornecidos pelo  Banco Mundial, através dos Worldwide Governance Indicators (WGI), e pela Organização das Nações Unidas (ONU), que são utilizados para classificar os Países Menos Desenvolvidos (PMD). Já quanto aos dados qualitativos, ele observou a história dos países onde a paz imperou desde a independência para avaliar as origens e caminhos adotados pela autoridade estatal nesses casos.

Com base nos três fatores utilizados para medir o sucesso de um Estado — autoridade, legitimidade e desenvolvimento — e nos dados levantados, Daniel acabou encontrando um resultado bastante diferente daquele defendido pela corrente predominante desde o fim da Guerra Fria: a teoria que une segurança e desenvolvimento, isto é, que entende que um Estado mais desenvolvido possivelmente é muito mais seguro e estável que um subdesenvolvido. De acordo com essa ideia, o subdesenvolvimento da região intensificaria os malefícios advindos de certos modelos políticos, das desigualdades sociais e econômicas e das diferenças étnicas nesses países. Logo, se o problema do subdesenvolvimento fosse resolvido, a estabilidade e a paz despontariam naturalmente nesses países, reduzindo a níveis mínimos a probabilidade de guerras civis.

Contudo, ao longo de seus anos de pesquisa, Daniel constatou casos nos quais países com o mesmo nível de desenvolvimento apresentavam destinos diferentes: alguns sucumbiam a guerras civis, enquanto outros exibiam uma estável estrutura estatal. Caso a teoria hegemônica realmente se reproduzisse, pelo menos 34 países da África Subsaariana deveriam estar em constante conflito, uma vez que estão entre os menos desenvolvidos do mundo — fato não constatado, já que um terço deles nunca passou por qualquer conflito. Além disso, esses países pacíficos são compostos por diversas etnias, foram colonizados e tiveram instituições impostas — o que poderia contribuir para que as leis e decisões não fossem obedecidas pela população —, atendendo em muitos casos todas as características apontadas como causas dos problemas dos países da África Subsaariana. “Ora! Estes países fizeram-me questionar veementemente a relação entre segurança e desenvolvimento”, aponta Daniel em um trecho de sua tese.

A partir disso, a pesquisa seguiu um longo caminho buscando demonstrar que a eclosão ou a prevenção de guerras civis nos países da região seguia lado a lado com os próprios níveis de autoridade dos Estados, ou seja, da capacidade de um governo e suas respectivas instituições garantirem a ausência de violência política e terrorismo, assegurarem que as leis fossem respeitadas e desempenharem efetivamente suas funções. “Os casos de Costa do Marfim, Libéria e Ruanda são emblemáticos quanto a isso: embora com processos de desenvolvimento distintos, apresentam evolução similar quanto à autoridade estatal, tanto na eclosão de conflitos quanto na pacificação desses”.

Variáveis inesperadas

Uma importante questão constatada a partir dos dados levantados e das visitas ao países africanos realizadas pelo pesquisador foi a de que a existência de lideranças tradicionais e a continuidade de características das civilizações pré-coloniais desempenharam papel essencial para a autoridade do Estado, em alguns casos fortalecendo-a e em outros concorrendo com essa. Esse ponto deixa claro, segundo a tese do autor, que a pesquisa não foca exclusivamente na autoridade estatal, deixando de lado outras causas e fatores, mas que na verdade apenas rechaça muito do que é ainda hoje vigente sobre a temática.

“Percebi que países que não tiveram conflitos têm altos níveis de autoridade estatal e, principalmente, que a autoridade estatal é capilar, isto é, que existe uma conexão das autoridades tradicionais com o Estado. O Estado se apropria delas e se faz presente até nos pontos mais distantes”, aponta Daniel. Ele explica que embora esse processo nem sempre tenha sido harmônico, o Estado acabava se convencendo sobre a necessidade de incorporar essas lideranças tradicionais de alguma maneira.

Daniel acabou descobrindo também que a legitimidade tem um papel significativo na estabilidade dos países da África Subsaariana, cuja influência não se esperava em tal medida no início da pesquisa. Nesse sentido, a legitimidade influenciaria no aumento dos níveis de autoridade e, consequentemente, no próprio fortalecimento das instituições estatais dos países. “A legitimidade acabou se tornando importante para demonstrar que, na verdade, ela fortalece a autoridade estatal e não o contrário. A legitimidade, nesse sentido, está atrelada a uma maior receptividade e concordância da população em falar ‘eu tenho que cumprir as ordens do governo independente se eu votei para ele ou não’”, aponta o Daniel.

A pesquisa atenta também para o fato de que, nos 21 países que nunca tiveram guerra civis ou conflitos não-estatais, a estabilidade foi garantida devido a fatores históricos e políticos no período pós-colonial que garantiram a capacidade do Estado de projetar seu poder por todo seu território. Ao lado disso, países que passaram por guerras, mas não retornaram mais a estágios de colapso após a paz, optaram pelo caminho de reconstrução da estrutura do Estado e de retradicionalização das instituições políticas, e não tanto pela busca de desenvolvimento, como é o caso de Angola, República do Congo, Libéria e Ruanda. Isso demonstra, segundo Daniel, que seja através da modernização das instituições estatais, seja pela aproximação das instituições daquilo que eram anteriormente à chegada dos colonizados, os países que foram sucedidos em seus processos de pacificação e estabilidade foram o que seguiram um caminho focado na reconstrução do Estado e na efetiva execução de suas funções.

No fim de sua pesquisa, Daniel ainda sugere três políticas que tendem a fortalecer os Estados, com base na análise dos países que nunca passaram por grandes conflitos: respeitar processos separatistas que ocorrem de maneira espontânea; não impor modelos de governos e instituições não-indígenas; e a retradicionalizar as instituições políticas, principalmente em áreas que mais se fazem presentes na vida da população, como a alocação de terras e resolução de disputas locais.

Quanto ao respeito aos processos separatistas, Daniel esclarece que “é preciso respeitar as secessões, o que não quer dizer encorajá-las”. No caso do Sudão do Sul, por exemplo, que em 2011 se separou do Sudão, o pesquisador expõe que pelo caso ter apenas um comparativo no continente — Etiópia/Eritreia — não é possível tratá-los em termos de padrão. “Até agora, todos os indicadores mostram que quanto menor o Estado, melhor em termos de autoridade, de desenvolvimento. Tudo indica que isso seria necessário e benéfico para a população. Claro, contudo, que Sudão do Sul e Eritreia estão me chamando a atenção de que pode ser que não seja tão factível assim. Mas eu não tenho como examiná-los e tomá-los com essa garantia.”

O pesquisador aponta que em termos de governança, a Etiópia está melhor que a Eritreia e o Sudão está melhor que o Sudão do Sul. “Então, eu me pergunto hoje se o sul-sudaneses votariam pela independência novamente. Acho que aí entra um problema sério de como conduzir  a secessão e esses referendos.” Contudo, Daniel destaca que uma questão que não pode ser negligenciada é a falta de dados. “Não posso supor que o Sudão do Sul hoje está pior que o Sudão, sem ter os dados sobre como o Sudão do Sul antes da secessão, já que não sei se para o que eles estavam vivendo antes, eles não estão melhores de qualquer jeito.”

Um dos maiores desafios da África será mudar a imagem pela qual geralmente é lembrada, trazendo uma nova que reflita a heterogeneidade e tendência de pacificação da região. Foto: Lüderitz, Namíbia/Daniel Carvalho

O Futuro da África Subsaariana

O autor encerra sua tese com o que chama de um otimismo cauteloso sobre o futuro da região. “Cauteloso porque, nos últimos anos, falou-se com um otimismo extremamente exagerado em termos econômicos e de desenvolvimento da África.” Segundo ele, ainda que os processos atuais possam significar uma tendência de redução de conflitos e de concentração desses em um pequeno grupo de países, a cautela deve ser mantida visto que “forças e potências não-africanas que exploram o continente têm interesses em dar poder a elites que lhes favoreçam”.

Além disso, de acordo com Daniel, o maior desafio da África e das pessoas que estudam o continente será mudar a sua imagem perante a mídia e  a academia, refletindo mais a heterogeneidade e tendência de pacificação a longo prazo. Quanto ao desconhecimento sobre o continente, o pesquisador ressalta que se deve incluir também “o fato de quase não se saber nada sobre a África, não só no ensino superior, mas no ensino Fundamental e Médio”.

Ao longo dos seus anos de estudo, o pesquisador visitou oito países africanos  África do Sul, onde pesquisou seis meses na Universiteit Stellenbosch; Botsuana, Namíbia, Zimbábue, Etiópia, Maláui, Tanzânia e Zâmbia que, segundo ele, foram essenciais para os resultados alcançados e para conhecer melhor esse continente. Além da coleta de dados e de informações, as viagens “são importantes para se ter uma noção real do que se vive, ainda mais porque eu estava querendo discutir o Estado e a sociedade. Foi bom porque me deu essa noção de como a própria sociedade se adapta ao meios, que as regras e a leis não chegam. Histórias como as de quando eu fui abandonado na fronteira entre Botsuana e Zimbábue, e as duas vezes em que soldados etíopes nada amigáveis apontaram suas AK-47 para mim certamente contribuíram para a construção de um imaginário mais próximo das realidades africanas: as coisas funcionam! De algum jeito, mas funcionam!”.

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