Ditadura brasileira agiu ativamente para reprimir LGBTs

Aparato militar da época fez uso tanto da violência física quanto da censura para coibir práticas que considerava nocivas à moral e aos bons costumes

Imagem: Reprodução

As truculentas ações ocorridas durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, geralmente são lembradas como associadas aos militantes, guerrilheiros e presos políticos da época. Contudo, o regime autoritário também utilizou seu complexo aparato repressivo para atuar contra pessoas que possuíam uma orientação sexual ou identidade de gênero diferentes das entendidas como padrão.

Em sua tese “Contra a moral e os bons costumes: A política sexual da ditadura brasileira (1964-1988)”, Renan Quinalha traça um panorama completo das ações tomadas pelo governo repressivo da época justamente nesse âmbito. Ao longo de seu estudo, uma série de medidas são levantadas mostrando não apenas à violência física contra os LGBTs, mas também as diretrizes que guiavam o controle no campo simbólico, com a constante ação da censura.

Marcada pelo lema em prol da moral e dos bons costumes, essa política sexual contava com a atuação de diversas agências do Estado, que englobavam as comunidades de informações, de segurança e de censura em torno de uma agenda moral comum, apesar das disputas e tensões entre elas. Por meio delas, o governo classificava a homossexualidade e outras orientações sexuais dissidentes, pornografia e erotismo como práticas que ameaçavam não apenas a ordem sexual e os valores ético, mas também a estabilidade política e a segurança nacional.

Visando coibir tais práticas, as ações do aparelho repressivo eram voltadas tanto para a repressão policial nas ruas quanto para o controle da produção cultural do Brasil da época, através de diversos meios. Envolviam ainda a vigilância ao movimento homossexual, que dava seus primeiros passos no país, e a perseguição aos seus poucos veículos de comunicação.

Renan relata que para traçar esse cenário se valeu de entrevistas com pessoas LGBTs que viveram naquela época e que tiveram uma atuação ou foram perseguidas, além de materiais encontrados nos acervos documentais da própria ditadura, disponíveis sobretudo no Arquivo Nacional e nos Arquivos Públicos dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. “Esse recurso foi essencial já que é difícil encontrar pessoas para falar sobre isso. Além disso, as memórias orais são muito problemáticas do ponto de vista da lembrança desses fatos traumáticos, ainda mais de um tema que era tabu”, explica o pesquisador.

Ele expõe também que os documentos foram importantes porque a pesquisa objetivava compreender a política sexual da ditadura, muito mais do que apenas traçar uma memória da resistência e da vida comum dos LGBTs daquele período. Logo, “nada melhor para isso do que os próprios documentos que formalizavam essa política, já que a ditadura teve uma obsessão burocrática muito marcada: tudo era formalizado em documento e registrado em processos, principalmente para dar uma aparência de legalidade e legitimidade para o período de exceção”.

O pesquisador deixa claro, no entanto, que todo esse material foi analisado com a ressalva de que eram documentos produzidos pela própria repressão e que por isso nem sempre refletem as verdades dos fatos, nem das pessoas que estão ali representadas. “Às vezes, era um jeito de atacar e de prejudicar a imagem pública delas, ‘acusá-las’ de homossexuais”.

Como complemento, o pesquisador recorreu a publicações tanto da grande imprensa, como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, quanto específicas para LGBTs, como o Lampião da Esquina, além de uma revisão da literatura sobre a temática, ainda que não houvesse muito material se comparado a outras faceta desse período. “Você tem uma quantidade de material razoável e de livros de memórias sobre o período da ditadura, tanto do lado da repressão quanto da resistência, mas geralmente centrado no embate entre quem implantou o regime com o Golpe de 64 e quem resistiu. Então é reduzir muito a história de 64 a 85 a um embate entre um governo e as oposições armadas”, explica.

Renan conta que o interesse pelo tema pesquisado vem de sua própria trajetória acadêmica, profissional e de ativista LGBT. Profissionalmente, o tema reflete sua carreira como advogado no campo dos direitos humanos e que trabalhou como assessor jurídico na Comissão da Verdade. De acordo com ele, tanto na academia quanto nas próprias Comissões da Verdade a questão da sexualidade ainda é pouca discutida, o que o impulsionou ainda mais a se debruçar sobre o tema.

Documento censurando música “De Leve”, de Gilberto Gil e Rita Lee. Imagem: Reprodução.

Ser LGBT na ditadura

Durante o regime militar, músicas, filmes, peças de teatro, telenovelas e programas de auditórios sofreram intervenções diretas e foram impedidos de circular por supostamente violarem “a moral e os bons costumes”, em especial quando supostamente faziam “apologia ao homossexualismo”. Travestis, prostitutas e homossexuais passaram a ser perseguidos, presos arbitrariamente e se refugiar cada vez mais em guetos.

Essas ações, assim como o próprio golpe de 64, contaram com apoio significativo de segmentos civis da sociedade: desde a Igreja e o empresariado até as camadas médias que se formavam com os processos de urbanização e industrialização acentuados do Brasil dos anos 30. “Essas camadas não só apoiaram como conclamaram muitas vezes por essa intervenção, pelo combate à corrupção e pela ordenação moral da sociedade, em uma série de exigências conservadoras”, explica Renan.

Ele cita que durante a pesquisa encontrou diversas cartas enviadas por cidadãos ao serviço de censura reclamando de programas televisivos. “Reclamavam do Ney Matogrosso dizendo que um cantor com trejeitos femininos estava aparecendo na televisão e que aquilo era uma aberração, ou mesmo do Clodovil que aparecia nos programas de auditório também sendo afeminado. Músicas da Rita Lee e do Gilberto Gil, mesmo que não estivessem fazendo uma oposição política, acabavam caindo nas teias da censura por tematizarem essas sexualidade dissidentes. E as próprias pessoas exigiam mais censura e mais repressão diante dessa ‘liberalidade’.”

A ditadura, portanto, acabou se valendo desse apoio civil para se legitimar e permanecer no poder pelos 21 anos que durou. Através das cartas, por exemplo, o serviço de censura se legitimava perante até mesmo os outros órgãos de informação e de segurança, já que, segundo Renan, a ditadura não era um Estado monolítico e facilmente caracterizável, havendo uma diferença de tratamento entre os próprios órgãos de repressão.

Apesar desse cenário, os LGBTs resistiam no Brasil, seja através de publicações próprias ou da concentração em pontos de sociabilização. Além do Lampião da Esquina, jornal veiculado entre 1978 e 1981, já nos anos 70 houve uma profusão de publicações da chamada imprensa alternativa ou nanica que escapavam do controle da repressão, ainda que sofressem uma série de retaliações. “O Lampião é emblemático porque foi o primeiro jornal feito por homossexuais para homossexuais de maneira mais politizada no sentido de movimento sexual. Havia jornais anteriores mas eles não tinham esse caráter do Lampião, que foi o primeiro jornal mais fortemente político no sentido estrito da palavra”, explica o pesquisador.

Capa do jornal “Lampião da Esquina” de maio de 1979. Imagem: Reprodução/Trabalho de recuperação de Renan Quinalha

Renan expõe que nesse período se assistia também a uma proliferação dos lugares de sociabilidade entre homossexuais, assim como um aumento expressivo da presença das travestis nos espaços públicos. Essa presença estava associada sobretudo aos pontos de prostituição que eram os únicos espaços possíveis numa sociedade que as estigmativaza. “Havia esse aparente paradoxo: uma ditadura que controlava os costumes e perseguia esses setores, ao mesmo tempo em que se notava o aumento do número de bares, boates, saunas, voltadas aos homossexuais.”

Para o pesquisador, justamente nessa aparente contradição é possível se perceber que a ditadura não trabalhou só através da interdição das homossexualidades, mas que se serviu também de uma série de estratégias para veicular discursos prescritivos e de modos de sexo legítimo. “O que se nota é uma tentativa de dessexualização do espaço público, fazendo com que essas pessoas fossem para lugares privados, seja suas casas, festas privadas ou boates. Afinal, era impossível conter, no crescimento das grandes cidades, o surgimento de lugares voltadas para esses públicos.” Ainda de acordo com ele, mesmo nesses locais, o público era constantemente assediado, censurado e controlado pelas forças policiais e outros órgãos de repressão.

O pesquisador constatou também que a ditadura reproduzia recortes de classe e de raça no controle moral desses corpos e sexualidades. “Para determinados segmentos sociais, como travestis pobres e negras, que estavam nos pontos de prostituição, era violência pura e crua. Para outros grupos de classe média, que estavam se empoderando com o crescimento significativo do milagre econômico, se permitia acessar determinados serviços, bares, casas noturnas, já que isso gerava renda e circulava riqueza; mas geralmente eram homens gays, cis, brancos”.

A questão LGBT na arena política

Em plena Guerra Fria, a problemática das sexualidades dissidentes também era vista no período da ditadura brasileira sob o viés político. Nesse sentido, o governo militar entendia a homossexualidade como um instrumento do movimento comunista internacional para subverter a tradição, os valores da família e da religiosidade cristã. Ao mesmo tempo, no âmbito mundial e de lado oposto, os países que seguiam o chamado socialismo real classificavam os homossexuais como exemplares da degradação e degeneração burguesa.

Nesse cenário, Renan explica que embora sua pesquisa não foque na esquerda brasileira, ele acabou lidando com a questão na análise dos materiais. “Nos dois lados os LGBTs eram mal compreendidos e estigmatizados. A esquerda brasileira lidava de maneira bastante problemática, já que ela reproduzia a homofobia e transfobia que estavam diluídas na sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que estava sendo perseguida e massacrada de diversos modos, em uma vivência clandestina com uma série de dificuldades até de sobrevivência.”

Ele explica que justamente por isso a esquerda acabou não priorizando o debate dessas questões identitárias, que surgiriam apenas mais tardiamente no Brasil. No entanto, como destaca o pesquisador, “não se pode equiparar a homofobia institucionalizada e estrutural da ditadura com a praticada por setores da esquerda, que era a homofobia social e cultural, porque o alcance e sentido delas são muitos distintos.”

Além disso, segundo Renan, são justamente esses setores de esquerda que no final dos anos 70 vão incorporar primeiramente o legado das lutas identitárias, dos homossexuais e das pessoas trans, e que constituirão coletivos dentro dos partidos de esquerda pelos direitos LGBTs. “A esquerda foi a primeira a fazer um aprendizado democrático e plural com a diversidade apesar das dificuldades de vida e desse recente passado de reprodução de uma série de preconceitos presentes nos partidos comunistas e em diversos outros grupos”, explica.

Contrapondo as ações tomadas pelo regime militar a acontecimentos atuais, o pesquisador expõe que é difícil atribuir a homofobia e a transfobia que vemos hoje no Brasil somente à ditadura. “É óbvio que há uma história mais longa e secular de violência contra esses segmentos, mas certamente a ditadura contribuiu muito para institucionalizar e converter em um política oficial de Estado a perseguição e estigmatização desses setores.”

Para ele, é muito sintomático notar que hoje se vive novamente um processo de moralização do debate público e de influência cada vez maior das religiões, sobretudo do fundamentalismo religioso, sobre as instituições democráticas e republicanas. “Isso está facilmente notado em episódios recentes, como a decisão judicial censurando a exibição de uma peça de teatro porque a atriz que encenava Jesus Cristo era travesti, em Jundiaí; o cancelamento antecipado da exposição do Queermuseu, em Porto Alegre, porque expunha material erótico e homoerótico; uma decisão de um juiz em liminar permitindo terapias de reorientação sexual, vulgarmente conhecida como cura gay”.

De acordo com Renan, essas decisões parecem refletir e relembrar a ditadura e sua busca por acentuar um controle religioso e moral dos debates, das políticas públicas e dos poderes constituídos. “Sem dúvida, muito do que estamos vendo hoje, ainda que estejamos numa democracia, parece reeditar esses mecanismos que a ditadura praticou em relação às sexualidades dissidentes no sentido de invisibilizar esses setores”.

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