Um dos temas mais polêmicos que rondam o governo do atual presidente do Brasil, Michel Temer, é a reforma trabalhista. Dentre as propostas apresentadas, com amplo apoio do empresariado brasileiro, está a mudança na carga horária máxima da jornada de trabalho permitida. De 44 horas semanais, ela iria para 48 – podendo o empregado trabalhar até 12 horas por dia, o que é limitado a oito nas regras atuais. Na contramão dessa proposta, algumas discussões biológicas apontam que as mudanças deveriam ser diferentes.
É a essa conclusão, entre outras, que chega a dissertação de mestrado de Carlos Cicco pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Em Deus ajuda quem cedo madruga? História do valor do trabalho como discurso: uma desconstrução biológica, o autor busca mostrar como se deu a transformação da concepção de trabalho como castigo para trabalho como virtude, evidenciando os diversos discursos e ideologias que permearam o assunto ao longo da história. Para isso, fez uma revisão bibliográfica do material histórico disponível sobre o tema, como livros e documentos históricos.
O início do pensamento do trabalho como castigo remonta ao período greco-romano, em que um dos males da humanidade liberados por Pandora ao abrir sua caixa, de acordo com o mito, era o trabalho. Um pouco mais tarde, com o desenvolvimento das religiões judaico-cristãs, o trabalho continuou a ser associado ao castigo. Na famosa passagem da bíblica de Adão e Eva, Deus os pune por comer o fruto proibido os condenando a colher os frutos para sua sobrevivência com o suor de seus rostos, isto é, trabalhar para sobreviver.
Mas não tardou muito para que isso mudasse. Foi num período de grande conturbação social, durante a Reforma Protestante, que o cenário se inverteu. A nova ética protestante, alinhada com os interesses do sistema capitalista que se esboçava na época, passou a se difundir amplamente. “Para a antiga nobreza feudal o trabalho não era bem visto, trabalhar era um motivo de vergonha. Com a ética protestante, o trabalho se torna uma vocação”, diz Cicco. Não trabalhar passa a ser considerado um ato pecaminoso, além de uma transgressão social.
Nos dias atuais, alguns séculos depois da Reforma Protestante, a valorização do trabalho toma roupagens novas. Há uma cobrança da sociedade para que o indivíduo seja produtivo, trabalhe sempre, o que se insere fortemente na lógica do capitalismo. Segundo Cicco, “hoje, essa questão do trabalho como virtude está ligada, sobretudo, à sustentação do próprio modelo do regime capitalista”. Não se trata mais de uma vocação de Deus ou sanção social, como antes, mas, sim, da perpetuação de um sistema que tem em sua base a exploração do trabalho, lembra Cicco.
No Brasil, a cada novo código penal, persiste uma lei punindo a vadiagem, servindo a interesses de cada contexto histórico. “Por exemplo, em um momento na transição entre monarquia e república, liga-se a vadiagem ao crime de capoeiragem (dançar capoeira na rua)”, explica Cicco. O objetivo era criminalizar a recém classe de negros libertos da escravidão. Até hoje, de forma renovada, a antiga Lei de Vadiagem, criada durante o período do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas, persiste. O artigo 59 da Lei das Contravenções Penais pune, com uma prisão simples de 15 dias a três meses, quem se entrega ao ócio sem ter uma renda que assegure sua subsistência.
“Por muito tempo, até a Idade Média, nós nos orientávamos por tarefas”, diz Cicco. A pessoa trabalhava o que tinha que trabalhar para sobreviver, de acordo com os ciclos naturais da Terra. “A partir do momento em que cumpria as atividades produtivas, basicamente ligadas à colheita, ele ficava ocioso, voltando a trabalhar quando tinha necessidade de novo de se plantar”. Em um segundo momento, com o desenvolvimento do capitalismo, e principalmente com a Revolução Industrial, as pessoas passaram a se orientar pelo salário e pelas máquinas. O capitalismo suprimiu qualquer traço de individualidade no trabalho, impondo uma rígida padronização dos horários.
Os estudos da cronobiologia, área da ciência que estuda a relação de periodicidade de fenômenos biológicos, revelam um fator que geralmente não é levado em consideração quando se pensa sobre o trabalho. Cada organismo, até mesmo dentro de uma mesma espécie, tem um ritmo biológico próprio. Cada pessoa tem o seu próprio horário biológico endógeno. Há pessoas, por exemplo, que são mais produtivas de manhã, já outras à tarde ou à noite. E isso, ainda, muda conforme as fases da vida. A criança tende a ser mais vespertina, idosos mais matutinos e adultos num período entre os dois. Na atualidade, a cronobiologia vem demonstrando o “quanto nós suprimimos nosso ritmo endógeno em função de horários sociais”, afirma Cicco.
O grande problema que vem se enfrentando é que a ritmicidade biológica individual é ignorada em diversas instâncias da sociedade. Crianças, costumeiramente vespertinas, são, muitas vezes, submetidas a horários escolares matutinos. A mesma coisa pode acontecer com adultos e idosos. E essa supressão, por sua vez, pode acarretar uma série de consequências negativas para a saúde das pessoas. Estresse e todos os problemas que o acompanham são umas das principais doenças que acometem pessoas nessas condições. Mas Cicco cita também o descompasso como um dos fatores desencadeadores de câncer.
“Nós vivemos em um mundo pós-moderno que está suprimindo essa nossa expressão de ritmos biológicos – e essa supressão já é uma característica do indivíduo pós-moderno”, conclui Cicco em seu trabalho. “Ele tenta a todo custo separar seu indivíduo biológico do seu indivíduo social”, continua, afirmando que não é possível e nem saudável fazer essa separação. “Não dá mais para viver em ambientes fechados, sem expressão de luz solar, em padrões comportamentais como se fôssemos máquinas, porque isso gera uma patologia – se não física, mental. Temos de seguir o nosso cronotipo”. Por último, Cicco encerra dizendo que o discurso de valorização do trabalho é puramente ideológico, serve uma classe específica dentro do sistema capitalista.
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