Malformação no desenvolvimento de órgãos ou qualquer outra estrutura do corpo humano são hoje relativamente comuns e vistos com naturalidade, dado a sua alta frequência, e na grande maioria dos casos as vias de tratamento são conhecidas e acessíveis. No entanto, há alguns casos específicos em que fatores científicos e especialmente sociais acabam interferindo no processo de diagnóstico e tratamento desses distúrbios. É o caso do que atualmente é conhecido como distúrbios do desenvolvimento sexual (DDS), e é justamente buscando uma forma de quebrar os paradigmas que dificultam o tratamento dessas doenças que a pesquisadora e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Berenice Bilharinho de Mendonça, propôs a execução de uma pesquisa durante seu ano sabático no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA). O intuito é a elaboração e divulgação de material educacional para o aprimoramento do diagnóstico e tratamento desses distúrbios no Brasil.
Se enquadra na classificação de DDS qualquer situação clínica de alteração do desenvolvimento da genitália externa, interna ou gônadas – que compreende os testículos e ovários. Dependendo de qual destas estruturas foi afetada, a doença será expressa em diferentes formas e exigirá cuidados específicos. Os processos que resultam nestas malformações são complexos e podem tanto ser motivados por um aumento na produção dos hormônios masculinos, como acontece na hiperplasia suprarrenal congênita virilizante (HSRC), como podem ser devido à deficiência na produção dos hormônios masculinos como nos casos em que há alteração no desenvolvimento dos testículos ou na ação dos hormônios masculinos por defeito dos receptores androgênicos. No caso da HSRC, a malformação dos genitais externos se expressa somente nas meninas, uma vez que a glândula suprarrenal passa a produzir uma elevada quantidade de hormônio masculino e a criança que tem constituição cromossômica 46,XX (feminina) pode nascer totalmente virilizada com um pênis. Nesta situação o diagnóstico precoce é fundamental, uma vez que há também a deficiência na produção de um hormônio denominado aldosterona, o que causa perda de sal e desidratação. Já no segundo caso, pode acontecer de um indivíduo com constituição cromossômica 46,XY (masculina) não desenvolver totalmente os testículos e, portanto, produzir de maneira insuficiente hormônios masculinos, apresentando muitas vezes um fenótipo feminino com vagina em fundo cego. Muitas mulheres 46,XY nascem com defeito no receptor androgênico e tem o corpo totalmente feminino, só sendo diagnosticadas na adolescência quando atingem a puberdade e não menstruam, já que não possuem ovários e útero. Uma vez que o desenvolvimento de características fenotípicas masculinas ou femininas dependem apenas da produção ou não de hormônios masculinos, na ausência destes, as características físicas serão femininas, e por isso a dificuldade do diagnóstico nestes casos.
A definição do sexo social que será assumido pelo paciente é delicada e envolve uma série de procedimentos, que levam em conta as condições que propiciariam melhor adaptação social e sexual, as possibilidades de fertilidade e também os aspectos psicológicos e o desejo dos pais. Não é possível determinar um procedimento único a ser adotado em qualquer caso de Distúrbio do Desenvolvimento Sexual, mas é possível ter uma noção básica do que seria mais indicado em cada caso particular. Nas crianças genotipicamente femininas afetadas pela HSRC, em geral opta-se por adotar o sexo feminino e realizar cirurgia plástica para correção da genitália externa, uma vez que ela possui o sistema reprodutor feminino e será fértil ao final do processo.
Nos indivíduos que possuem cariótipo 46,XY mas sofreram virilização parcial há a possibilidade de se optar por qualquer um dos sexos sociais, mas a escolha é pautada sempre por todos os procedimentos já citados. No grupo multidisciplinar do qual Berenice faz parte, destinado a estudar e tratar os DDS, foram realizadas pesquisas a longo prazo para observar pessoas que sofreram do mesmo distúrbio e assumiram diferentes sexos sociais. Num grupo de 35 indivíduos com DDS 46,XY por deficiência da enzima 5-alfa redutase tipo 2, responsável pela virilização dos genitais internos na vida intrauterina, os que assumiram o sexo masculino apresentaram melhor qualidade de vida social e sexual do que os que assumiram o sexo feminino, além do fato de que os primeiros preservaram a fertilidade.
De acordo com Berenice, a partir do momento em que o médico entra em contato com pacientes com esses distúrbios, é necessária a realização de diversos exames antes de iniciar qualquer tipo de tratamento ou procedimento cirúrgico. Por conta do desconhecimento generalizado que ronda os DDS, muitas vezes os médicos, sob a pressão da família, querem resolver a situação o mais rápido possível e acabam se precipitando e fazendo a atribuição errada do sexo. O profissional da saúde deve estar também preparado para orientar e lidar com a família, já que é uma situação de grande tensão. “Você imagina quando você está esperando um bebê, espera o nascimento de um menino ou de uma menina e nasce uma criança que você não consegue definir o sexo pelo aspecto externo”, pontua a pesquisadora. Há ainda a dificuldade inicial de se constatar que a criança possui uma genitália atípica. Muitas vezes o exame da genitália da criança não é realizado com detalhe pelo neonatologista após o nascimento, e o diagnóstico é suspeitado quando a criança tem desidratação por perda de sal ou quando os próprios os pais percebem que a criança apresenta alguma malformação, quando esta é externa. O diagnóstico precoce é extremamente importante uma vez que a recomendação é que as crianças que apresentam distúrbios de desenvolvimento sexual não sejam registradas enquanto não se definir o diagnóstico.
Para realizar o diagnóstico e tratamento, é necessário uma extensa equipe médica que conte com neonatologistas, endocrinologistas, geneticistas e cirurgiões plásticos, além de um psicólogo que fornecerá apoio e orientação durante todo o processo. Esta equipe é encontrada em centros terciários e um médico que não está treinado a atender estes pacientes deve orientar os pais que a criança nasceu com malformação dos genitais e que será encaminhada para um centro mais desenvolvido que possa realizar a definição do sexo.
Para Berenice, o mais importante é que esse diagnóstico seja desmistificado e a doença seja tratada assim como qualquer outra, caminhando na contramão do preconceito e estigmatização que estes indivíduos acabam sofrendo. Apesar de ser uma doença relativamente frequente – a incidência da genitália atípica é de 1 em cada 2.500 nascimentos – o grau de informação sobre a doença ainda é pequeno. A intenção dela é utilizar a sua experiência ao longo dos 40 anos que estuda este tipo de distúrbio, aliada à vivência de trabalhar em um centro de referência que têm grande contato com estes casos, para fornecer materiais que auxiliem médicos, profissionais da saúde e pais que não estão familiarizados com o assunto.
Além da escrita de um livro para a orientação de crianças com genitália atípica, a pesquisadora pretende também produzir pequenos encartes de orientação de conduta, que instruam a respeito da postura do profissional da saúde diante da família, dos processos, exames e outros aspectos que resultem na boa condução destes casos. A intenção é continuar também com a consultoria informal que ela já presta via e-mail e telefone, e que poderá ser estendida também à outras plataformas como o google e youtube. “Essas são doenças tratáveis, se você souber conduzir essa criança terá uma vida normal feliz. Os pacientes que não vivem bem geralmente foram tratados de maneira inadequada”, aponta. “Por isso temos que divulgar o conhecimento e o tratamento adequado”.
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