O retrato social e musical de Noel Rosa

Pesquisa busca analisar desde a musicalidade à percepção social do músico

Arte: Erika Vanoni

Noel Rosa viveu grande parte de sua carreira musical nos anos 1930 durante o governo de Getúlio Vargas. Nesse período, sua inovação como sambista esteve atrelada não só às suas criações musicais como ao envolvimento crítico de suas canções. Em pesquisa intitulada “Noel Rosa, compositor da vida moderna”, o pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB), Rodrigo Aparecido Vicente, busca investigar a relação do músico e seu papel na cultura popular com as transformações econômicas e sociais pelas quais o Brasil passava.

Com o título que é uma paráfrase da obra do autor francês Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna, Noel seria um Compositor da Vida Moderna, uma vez que o Rio de Janeiro, cidade onde viveu, passava por diversas modernizações enquanto o compositor não deixava de acompanhá-las. Nascido em Vila Isabel, o músico era um boêmio e um malandro nato, porém branco e de classe média, conforme afirma o pesquisador. Via a modernização da cidade de forma crítica e isso só era possível porque, “ele estava na rua, tava vagando, não era um compositor de gabinete”, conta.

Arte: Camilla Freitas

É a partir da década de 1930, também, que o próprio samba se define – antes as fronteiras entre os estilos eram indefinidas – e o compositor é um dos nomes responsáveis pela consagração desse estilo como o conhecemos hoje. A indústria fonográfica também ganha espaço e com ela as propagandas políticas do governo. “O músico popular, sendo um artista muito livre, aproveita essa situação para criticar sutilmente essa propaganda tão intensa do governo de alguma forma”, comenta. “Isso é muito novo, você ter não um pintor ou um escritor, mas um músico popular com uma visão tão crítica, principalmente das propagandas do governo que na época eram bastante fomentadas por Vargas.” Noel criticava até mesmo as propagandas que o governo fazia com o próprio samba. Buscando uma identidade nacional, Vargas encontrou no samba e no futebol esses elementos de identificação com o brasileiro. Mas nem o próprio sustento do sambista deixou de ser criticado por ele mesmo.

Arte: Camilla Freitas

Foi “o novo” de Noel Rosa que atraiu o pesquisador, e não é só o fato de lidar com questões sociais. O músico soube trabalhar tanto com os aspectos formais da música quanto com sua experiência tocando em emissoras de rádio, gravadoras, bares e nos morros, traduzindo em suas canções essa vivência nesses dois mundos aparentemente distintos. Essa junção o pesquisador já havia encontrado no Trio Surdina em sua pesquisa de doutorado, e foi esse um dos motivos que o fez querer pesquisar, também, a musicalidade de Noel. “Isso sempre me chamou a atenção, esses momentos de renovação, esses momentos nos quais começam a surgir rompimentos com padrões, com antigas regras, normas, apontando novos rumos em termos de composição.”

O samba e a sociedade de hoje

Em 2017 completam-se 80 anos da morte do compositor, que sem dúvida deixou um enorme legado para os sambistas de hoje. Mesmo que o samba com certo teor crítico não esteja tocando nas rádios atualmente, como acontecia na época de Noel, isso não quer dizer que ele não ocupa um cenário dentro do gênero. “O mercado de uma forma geral foi se segmentando, há diversos tipos de samba hoje. Mas  aqueles artistas que vão permanecer nesses redutos de samba com um teor mais crítico ficam um pouco mais isolados, sem grande visibilidade na mídia.

Não só porque seu samba ainda dialoga com os sambas que são compostos hoje, ou porque compôs algo em torno de 200 canções em seus 27 anos de vida, que Noel Rosa é uma figura que merece ser estudada. Tratando-se novamente de como ele encarava, em suas canções, a sociedade que o cercava, sua música também reflete questões sociais no país que, ainda hoje, depois de 80 anos de seu falecimento, não foram resolvidas. “No samba de Noel, você vê o instante que em que se revela um processo histórico turbulento e complexo, que é um desenvolvimento que se dá de uma forma muito desigual.” Os processos de construções como o da Avenida Rio Branco no início do século XX, no Rio de Janeiro, e os de instalações de bondes nas cidades grandes, que fizeram com que a população pobre que vivia nas regiões que posteriormente viraram centros comerciais e financeiros se marginalizasse para os morros, é algo extremamente atual. “Acho que isso não muda, às vezes os meios são outros, os discursos mudaram, tornando os processos distintos, mas parece que, no fundo, os projetos permanecem os mesmos”, afirma o pesquisador. “Você privilegia determinadas regiões em detrimentos de outras, e geralmente em detrimento de quem está às margens”. Para ele, são os artistas populares, assim como foi Noel Rosa, que retratam melhor a situação da cidade diante desse cenário. Cita o rap, e a cultura Hip-Hop como um todo, como os principais expoentes dessa crítica à marginalização que o sambista tratava nos anos 1930.
O que pode ter passado à crítica de Noel, no entanto, são questões ligadas ao feminino, principalmente à mulher negra. Em termos gerais, a sociedade da época era ainda mais conservadora que a de hoje, e entendia a mulher como um ser dependente do homem e que, ao mesmo tempo, deveria estar sempre a seu serviço. “Noel vai tocar em algumas dessas questões quando ele fala da mulata, esse termo que é muito recorrente na época, mas ele trata como objeto, como símbolo nacional, como símbolo de mulher brasileira.”

Arte: Camilla Freitas

Diante de todo esse retrato musical e social traçado, Noel mostra-se um músico cheio de vertentes e que em poucos anos de vida deixou grandes influências para a cultura brasileira. Para Rodrigo, ainda é importante pesquisá-lo, e ele continuará o fazendo mesmo não sendo bolsista, justamente porque Noel é um artista de seu tempo e com ele envolvido. “É com esse tipo de comportamento que podemos notar que, também, através da cultura podemos exprimir o que há de melhor nesse país, o que ele tem de bom, mas, também, apresentar o que ele tem de ruim.”

 

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