As implicações e desafios de diagnosticar o Transtorno do Espectro Autista

Com o aumento da visibilidade do TEA, é necessário analisar os recortes do processo de diagnóstico e suas consequências na vida dos pacientes e família

De acordo com o Censo de Educação Básica, o número de crianças com TEA matriculadas em escolas aumentou cerca de 50% entre 2022 e 2023. [Imagem: Reprodução/Unsplash]

Por Beatriz Garcia, Isabella Gargano, Lívia Uchoa, Miriã Gama e Sofia Zizza

      O Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem sido um assunto de destaque no ramo da psicologia devido ao crescimento no número de pacientes diagnosticados dentro do espectro nos últimos anos. Considerado um distúrbio do neurodesenvolvimento, o TEA, comumente chamado de autismo, pode apresentar características variadas em cada indivíduo, fator que contribui para a dificuldade no processo de reconhecimento do transtorno. 

Em 1943, Leo Kanner escreveu o artigo  Distúrbios autistas de contato afetivo, no qual analisou 11 casos de TEA, e assim inaugurou-se essa nova forma de enxergá-lo. O termo autismo mudou de conceito, antes era relacionado a psicanálise, e a partir da revolução cognitiva viu-se que não era um problema de maternidade ou socialização familiar, e sim algo de origem cerebral cognitiva.

     Atualmente, o diagnóstico é feito a partir da observação comportamental direta do paciente, em um processo complexo e que pode demorar meses, até anos, para ser concluído. Esse é um grande perigo: a demora no processo de identificação do TEA acarreta em um atraso no tratamento e, consequentemente, atraso no desenvolvimento do indivíduo. Para compreender a fundo essa situação, é necessário retomar como se dá todo o processo de diagnóstico e analisar a corrida contra o tempo que é determinante para os pacientes.

Perspectivas do processo de diagnóstico

Diagnosticar o TEA é um processo complexo. É necessário que o paciente passe por uma série de avaliações clínicas detalhadas com profissionais qualificados, como explica Gabrielly La-Cava, neuropsicóloga especializada em transtornos do neurodesenvolvimento. “O diagnóstico do TEA se dá a partir de uma avaliação clínica que inclui entrevistas para coleta de informações detalhadas sobre o indivíduo, tais como: desenvolvimento, história pessoal, educação, histórico familiar, funcionamento social, entre outros; além de observação comportamental”, completa.

Em entrevista para a Agência Universitária de Notícias (AUN), a neuropsicóloga ressalta a importância da análise correta dos sintomas do TEA que, por serem variáveis, podem ser facilmente confundidos com outras doenças do neurodesenvolvimento, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou transtornos de ansiedade, o que torna a avaliação do TEA abrangente. “Uma avaliação cuidadosa e o uso de instrumentos diagnósticos padronizados são os recursos necessários para um diagnóstico preciso. A colaboração entre profissionais de diferentes áreas, como fonoaudiólogos e psicopedagogos, também é crucial”, acrescenta. 

Em relação ao surgimento dos primeiros sintomas, a doutora pontua a importância da atenção dos pais e cuidadores na primeira infância (primeiros seis anos de vida) com os sintomas, que podem ser observados por volta dos dois a três anos de idade. “Os pais e cuidadores da criança podem perceber atrasos no desenvolvimento da linguagem, dificuldades na interação social e comportamentos repetitivos ou restritos. No entanto, o diagnóstico pode ser feito em qualquer idade.”

Comportamentos como o alinhamento de brinquedos e movimentos repetitivos com as mãos podem ser um sintoma do TEA, explica Gabrielly La-Cava. [Imagem: Reprodução/Pixabay]
Um dos grandes empecilhos, que leva a ocorrência de diagnósticos tardios e até mesmo equivocados, é a falta de um teste orgânico que possa detectar o TEA com certeza, até o presente momento, aponta Patrícia Lorena, pesquisadora da especialista em neuropsicologia e autismo. “Há um consenso na literatura, tanto nacional quanto na internacional, que é mais robusta, que existe uma predisposição genética, a partir de pequenas mutações, que mostra que pessoas com parentes com outros tipos de transtornos mentais desencadeiam aquele tipo de transtorno. Isso, aliado a  fatores ambientais, define o fenótipo do TEA.”

 Patrícia reforça que, apesar desses estudos, não se pode afirmar a causa do autismo, e ainda expressa sua opinião: “O diagnóstico mais preciso é feito por equipes de saúde, especialistas no assunto, quando digo isso, não são aqueles que só leram sobre o assunto e nunca viram um autista na vida”.

 

“Você precisa conhecer os pacientes do espectro para fazer um diagnóstico mais certeiro”

Patrícia Lorena, pesquisadora do tema

 

A pesquisadora explica que, de acordo com o CID 10 (Classificação Internacional de Doenças), existem três pontos de comorbidades considerados no diagnóstico do TEA: dificuldade na linguagem, socialização e tendências a comportamentos repetitivos. “Tem uma variabilidade muito grande dentro da linguagem, um processo de desenvolvimento, alguns falam muito bem, e de temas até prolixos e outros que não falam nunca.” Dessa forma é difícil entender o que faz parte do desenvolvimento da criança e o que é consequência do transtorno.

Outro problema levantado pela pesquisadora é o modismo sobre o assunto. “Existe uma moda de dar esse diagnóstico, é muito difícil que uma pessoa, mesmo de grau 1, passe despercebido na infância e na adolescência, porque ele tem prejuízo adaptativo”. Ela explica que há uma tendência, na hora do diagnóstico, de não diferenciar o laudo do autismo de outros transtornos não tão “em alta” hoje em dia, “isso lá na frente vai prejudicar quem realmente tem autismo”.

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o TEA é um espectro dividido de acordo com a intensidade dos sintomas. “Atualmente se falam em níveis de acordo com as necessidades de suporte, sendo que o nível l necessita de apoio, o nível 2 necessita de apoio substancial e o nível 3 precisa de um apoio muito substancial”, explicam as psicólogas Amanda e Luciene Bezamat, mãe e filha, criadoras do “PsiPOD” — podcast focado em falar sobre neurodivergência e neurodiversidade. 

 

Criado em 2023, o “PsiPOD” busca democratizar os conhecimentos sobre psicologia e saúde mental. [Foto: Instagram/@psipod.bezamat]

A problemática do diagnóstico tardio

Apesar do transtorno dar seus sinais iniciais durante a infância, de acordo com a OMS ele tende a persistir durante a adolescência e até a fase adulta, uma vez que não há uma cura. Ainda sim, muitos casos de TEA são diagnosticados somente na fase adulta, o que desencadeia uma série de problemáticas. 

Em entrevista para a AUN, a estudante de psicologia Karen Gomes, conta que desde a adolescência os traços de TEA eram aparentes em seu comportamento, mas foi somente aos 21 anos que recebeu o diagnóstico. “Minha mãe via alguns traços no meu comportamento porque gostava de estudar sobre isso, mas na época não tinha toda essa informação que temos hoje sobre autismo. Então, deixamos para lá essa hipótese.”

A respeito dos obstáculos para o diagnóstico, a psicóloga Gabrielly La-Cava explicou que: “Diagnósticos tardios muitas vezes ocorrem devido a preconceitos culturais, dificuldades no acesso a serviços de saúde especializados, e a presença de sintomas mais sutis em casos de autismo de alto funcionamento, que podem ser confundidos com outras condições.”

Após um longo processo de investigação, Karen conta que finalmente chegou a um diagnóstico preciso que esclareceu tudo. “Foram dois meses de avaliação, a neuropsicóloga aplicou uns sete ou oito testes com escalas, e no final ela me deu um relatório super completo dizendo que a conclusão era que tenho Transtorno Espectro Autista em nível 1.”

Os indivíduos que ainda não têm o diagnóstico enfrentam dificuldades de aceitação e socialização pela falta do suporte necessário. “O diagnóstico tardio causa uma questão com autoestima de você se sentir tão diferente das outras pessoas que você meio que se obriga a ser parecida com elas, e acaba não impondo limites ou até desrespeitando os seus próprios”, acrescenta Karen.

Na prática, identificar o TEA vai além do diagnóstico, o conhecimento traz clareza aos portadores do transtorno que passaram a vida enfrentando dificuldades de socialização e padrões divergentes de comportamento. Sobre esse processo, Fábio Duarte, influenciador que compartilha sua experiência como autista na internet,  contou que receber o diagnóstico não foi uma surpresa, mas esclareceu seu passado e o fez refletir:“Era por isso que eu me comportava daquele jeito”. 

Diante da dúvida, o indivíduo encara não só a dificuldade em entender a si mesmo, mas a culpa por afetar a vida dos que estão por perto. “Ter acesso ao laudo tira a culpa sobre seu comportamento, ele mostra quem você é”, explicou Duarte. Por isso, essa resposta contribui para a qualidade de vida não só do portador do transtorno, mas também dos que o cercam.

“Conhecendo o seu próprio comportamento, você consegue entender como você é para o outro.” 

Fábio Duarte

A importância da rede de apoio 

Gabrielly La Cava também explica sobre a importância e necessidade de uma rede de apoio sólida. “A rede de apoio é fundamental para o desenvolvimento e bem-estar de pessoas com TEA.” Ela afirma que durante a infância, a família, a escola e os profissionais de saúde precisam trabalhar juntos para proporcionar um ambiente estruturado e terapias adequadas ao bom desenvolvimento. Em relação aos adultos, ela ressalta que o suporte pode incluir a família ou pessoas da convivência do paciente, a psicoterapia, a terapia ocupacional e grupos de apoio social. “Uma rede de apoio bem formada promove autonomia, inclusão social e qualidade de vida”, acrescenta. 

Socorro Diz y Gil Corbi é analista de softwares e principal rede de apoio de sua filha de 33 anos, Nicole, diagnosticada com autismo. Ela afirma que mesmo com uma maior disseminação de informações sobre o TEA na sociedade, ainda há um entendimento muito superficial, em que não se sabe sobre o dia a dia da pessoa e de sua família. 

Ela conta que quando Nicole nasceu, o TEA era um transtorno pouco abordado, e poucos profissionais sabiam diagnosticar e como prosseguir com o tratamento. “Quando ela tinha uns seis meses reparei que começou a ficar muito quieta e que seu comportamento diferia muito das minhas outras filhas, quando estavam na mesma faixa etária.” 

Ela relembra que levou Nicole em um pediatra na cidade onde moravam, nos Estados Unidos, e o primeiro palpite foi a surdez. Socorro afirma que essa possibilidade era impossível, uma vez que a filha sempre gostou muito de música, as ouvia perfeitamente e se animava com elas. “Quando voltamos para o Brasil busquei nosso pediatra de confiança. Ele logo me encaminhou para uma psicóloga e para um neurologista, que deu o diagnóstico de autismo. Ele sabia o que era, mas não sabia o que fazer”, completa.

A analista conta que após o laudo se iniciou uma busca por atividades que fossem interessantes para sua filha. “Íamos procurando coisas que ela pudesse interessar, atividades lúdicas, música e natação. Não existiam trabalhos direcionados ou profissionais especialistas. Foi tudo na base da tentativa e erro.” A mãe relata que Nicole começou a fazer terapia e criou um vínculo muito forte com a professora particular que fazia algumas atividades com ela.

No ano seguinte, Nicole foi para a escola na qual essa professora trabalhava. “Era uma escola pequena na qual a dona abriu uma exceção. Foi uma inclusão de coração, não era nada imposto. E foi ótimo, ela foi o ano todo para a escola e as crianças a acolhiam muito.” Ela conta que a família sempre teve apoio de conhecidos, mas que a própria Nicole decidia se gostava ou não de certo local ou atividade, o que dependia muito do acolhimento, que precisava ser tanto do adulto presente quanto do grupo em si. 

Família de Socorro e Nicole em uma apresentação de Ballet.
[Foto: Arquivo Pessoal/Socorro Diz y Gil Corbi
Socorro relata que sempre foi muito difícil ser a principal rede de apoio de sua filha. “Tive muita sorte de ter ajuda em casa, pessoas muito sensíveis e disponíveis que trabalhavam em casa para ficar com a Nicole e minhas outras filhas.” Ela conta que quando descobriu o diagnóstico, ela passou uma temporada sem trabalhar e que um tempo depois até tentou voltar, mas não conseguiu. “A minha carreira deixou de existir, não era fácil de conciliar. Já é difícil para qualquer mãe”, completa. 

Ela fala também sobre a diferença de tratamento e compreensão da sociedade com uma pessoa com TEA quando criança e na vida adulta. “Com as crianças sempre há uma compreensão maior. Os adultos devem se comportar de acordo com uma cartilha esperada pela sociedade e ela não se comporta dessa forma.” Ela conta que muitas vezes as pessoas entendem algumas atitudes como falta de educação e não levam em consideração que é necessário olhar com diferença. “ É uma questão de conscientização, de entender que existem casos diferentes de autismo. Casos como o da Nicole, que necessitam de mais atenção e compreensão, não vejo em nenhum tipo de campanha.”

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*