As experiências de acesso aos serviços de saúde de dez pessoas vivendo nas calçadas e adjacências da Avenida Paulista em janeiro de 2019 foram objeto de estudo da pesquisa “O acesso à saúde pela população em situação de rua da Avenida Paulista: barreiras e percepções”, publicada na revista da Escola de Enfermagem (EE) da USP. A maior parte dessa população busca atendimento somente quando se envolve em uma emergência.
Para lidar com um mal-estar, algumas pessoas optam por intensificar o uso de substâncias psicoativas, outras procuram um centro de acolhida ou não fazem nada. Metade não conhecia nenhum serviço de saúde na região e algumas preferem ir até o centro da cidade pelo melhor atendimento.
“É que, na rua, você tem outras preocupações além da saúde. Você tem fome e horário pra ficar na porta de restaurante pra você comer; você tem que pedir”, disse uma das pessoas em situação de rua a Micael Almeida, enfermeiro especialista em saúde mental que atua numa unidade do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e um dos autores do artigo. A maioria dos entrevistados foram homens, entre 20 e 40 anos, negros, migrantes, vivendo sozinhos e fazendo uso de várias substâncias psicoativas. O perfil é semelhante ao descrito pelo censo da população de rua de São Paulo de 2019.
Hoje, já há mais famílias na rua. A Prefeitura da capital paulista adiantou a realização do novo censo, programado para 2023, para o ano passado, diante dos efeitos sociais da pandemia do coronavírus. Eram 31.884 pessoas nessa situação em 2021, 31% a mais que em 2019. Já a ONG Movimento Estadual da População em Situação de Rua calcula um número maior: 66.280 pessoas.
Mas esse contingente vem aumentando na Avenida Paulista e em outras vias importantes das metrópoles brasileiras desde antes da pandemia, reflexo em parte do desemprego e subemprego provocados pelas dinâmicas econômicas e pela crise política de anos no Brasil, de acordo com Márcia Aparecida Ferreira, pesquisadora, professora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiátrica da EE-USP e co-autora do artigo. A exclusão social, a discriminação e as limitações do alcance dos serviços de saúde compõem as dimensões da vulnerabilidade que impactam a população em situação de rua em seu acesso à saúde.
“Eu esperei até de manhã pra passar no médico, mas eles não tiraram raio-X, não fizeram nada, nem exame de sangue. E eu sei mais ou menos o que tem que ser feito”, disse outro entrevistado a Almeida sobre sua osteomielite (infecção ou inflamação do osso) na perna. “Então, eu também não fui mais.”
É um tratamento que reflete o reducionismo da pessoa em situação de rua, como identifica Gabriella Boska, enfermeira doutora pela EE-USP, professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) e outra autora do artigo. “Desconsideramos essas pessoas como parte da sociedade e as reduzimos a um mero objeto que fisicamente está ali andando pela Avenida Paulista e que talvez cometerá um ato contra a sociedade”, afirma.
Barreiras
Além do preconceito, outro obstáculo relatado por essa população para acessar o atendimento médico é a burocracia na exigência de comprovante de endereço, documentos de identidade e do cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), além da pouca flexibilidade de horários. Também impactam a pequena aceitabilidade, que é a baixa escuta dos profissionais de saúde, com julgamentos inadequados e pouca compreensão e empatia; e a demora para agendar um exame e até da chegada do serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU).
“Querendo ou não, tem um preconceito”, disse uma das pessoas em situação de rua a Almeida ao contar que, com dois chamados, a ambulância demorou quase nove horas para atender à crise de convulsão do “pai”, apelido da pessoa mais antiga do grupo. “Nós é o quê? Morador de rua, [então] não veio. [Ele] quase morreu.”
Os enfermeiros são os profissionais da saúde que podem levar a uma melhora significativa dessa situação. “O enfermeiro consegue, a partir de sua prática, entender que não é possível fazer tanta exigência para atender a uma pessoa em situação de rua”, afirma Almeida. “Devido à nossa formação, o enfermeiro às vezes acaba sendo esse burocrata, essa figura que barra.”
No tratamento de problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, as pessoas em situação de rua dizem também enfrentarem condições de permanência (alimentação, infraestrutura, assistência com viés religioso, terapia ocupacional) que não seguem as diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, incluindo a exigência de abstinência.
Medidas
Para melhorar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, o estudo diz ser necessário levar em conta suas especificidades, concepções de saúde-doença e trajetórias de vida ao longo do atendimento, pois todos somos “corpos com mente e história, pregressa e futura”, define Almeida.
Nesse sentido, a abordagem que se atenta somente às necessidades humanas físicas básicas é um “assistencialismo”. “Eu oferto uma consulta, um exame, mas vou levar em consideração o que a pessoa acredita? Ou vou levá-la a fazer procedimentos invasivos que para ela não fazem nenhum sentido?”, questiona.
Na enfermagem, a relação interpessoal que o profissional estabelece com o paciente é sua principal ferramenta de trabalho e é aquela que precisa ser aprimorada no atendimento às pessoas em situação de rua, especialmente em relação às medidas terapêuticas, como a aceitação, o apoio e a abordagem isenta de julgamentos. “A relação terapêutica permite você conhecer as pessoas de outro jeito, considerando seus desejos, história, família, cultura, as questões sociais e espirituais, e colocar tudo isso num projeto de vida”, explica Boska.
Esse conhecimento deve ser construído já na graduação. “A enfermagem ainda é uma profissão de viés ‘biologicista’: a gente ainda dá muito valor para o corpo físico”, completa.
Outro ponto recomendado pelo estudo é promover ações em rede que articulem setores além da saúde, como a assistência social, habitação e trabalho, com a participação ativa da população em situação rua na formulação de políticas públicas e avaliação de seus resultados, e sem deixar de considerar as medidas já existentes, como a Política Nacional para a População em Situação de Rua, de 2009, e, na saúde, o Consultório na Rua, implementado em 2011, em que equipes multiprofissionais promovem o cuidado integral dessa população de acordo com suas necessidades de forma integrada com os CAPS e os serviços de urgência e emergência.
Os pesquisadores lembram que o objetivo não é retirar essas pessoas da rua, nem “limpar a cidade”, mas levar o cuidado em saúde e promover sua autonomia “perante uma sociedade excludente e desigual”. Para Almeida, trabalhar com essas pessoas e aquelas que fazem um uso problemático das drogas é “uma luta, porque são pessoas que não são quistas pela sociedade e são colocadas à margem de tudo. O que a gente constrói com os pacientes é de muita resistência”.
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