Durante os anos 70, ápice da ditadura civil-militar brasileira, a psicanálise tornou-se um fenômeno no Brasil. Pessoas buscavam tratamento psicanalítico e discutiam-se as ideias do médico Sigmund Freud, considerado “o pai da psicanálise”, nos jornais. Entretanto, esse fato pode parecer paradoxal quando observado pela ótica de Élisabeth Roudinesco, estudiosa da psicanálise. Roudinesco afirma que a democracia é imprescindível para que a psicanálise floresça. As ditaduras latino-americanas, contudo, estão aí para provocar uma análise mais detida desta hipótese.
Na tese de Doutorado “A psicanálise na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985): história, clínica e política”, defendida no dia 6 de junho de 2021, o pesquisador Rafael Alves Lima, do Instituto de Psicologia da USP, reexamina a conjectura de Roudinesco e explica como a psicanálise se comportou durante a ditadura no Brasil.
Adaptar-se para sobreviver
Em relação aos cenários políticos e sociais nas épocas em que a Alemanha e a Itália eram dominadas pelo Nazismo e pelo Fascismo, respectivamente, a estudiosa da psicanálise estava correta. “Tanto Freud quanto seus principais discípulos eram judeus e todos eles foram obrigados a sair de seus países”, explica Rafael. O que aconteceu com a psicanálise durante a Segunda Guerra Mundial em países como a Alemanha foi um processo de “nazificação”.
Os nazistas “se apossaram dos institutos, se apossaram dos conhecimentos e promoveram uma espécie de psicanálise arianizada, que no final tem pouco a ver com psicanálise”, continua o pesquisador. “A psicanálise pulverizou”, concluiu ele.
Já no Brasil, a partir de estudos de jornais da época e análise de arquivos digitalizados, Rafael concluiu que a psicanálise não apenas sobreviveu, como floresceu durante a ditadura civil-militar. “Existe uma diferença entre deixar de existir, entre a psicanálise morrer em um país sob uma ditadura como foi a do Brasil, e perder a autonomia”, explica. “Boa parte do campo cedeu às pressões externas, se misturou com as agendas políticas da ditadura. A psicanálise floresceu sem qualquer autonomia. Ela incorporou a agenda militar”, pontua o pesquisador.
O símbolo desta psicanálise submissa à ditadura, explica Rafael, foi o escândalo Amílcar Lobo.
O caso Amílcar Lobo
Amílcar Lobo era um médico que estudava a psicanálise e serviu o exército de 1970 até 1974, trabalhando no quartel da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, onde funcionava o Doi-Codi. A função de Lobo, segundo ex-presos políticos, era examinar os presos para ver se ainda estavam aptos para torturas. O caso foi abafado no Brasil até 1979, quando veio à tona em um congresso de psicanálise. A partir daí, o escândalo ocupou diversas páginas de veículos jornalísticos como “Isto É” e o “Jornal do Brasil”, segundo Alves Lima.
“Esse escândalo colocou a psicanálise diante do espelho”, analisa o pesquisador. “O projeto que os psicanalistas chamavam de neutralidade política, que de neutralidade não tem nada, foi um pacto com com discurso militar”. Na década seguinte, a psicanálise passou por um processo de revisão de suas práticas e de sua ética.
“Graças a esse movimento da primeira metade dos anos oitenta, os psicanalistas perceberam que eles tinham sim que se politizar tinham que tomar posições públicas, digamos assim, em defesa da democracia. Acho que a grande diferença, hoje, por parte dos psicanalistas, é que eles não vão ficar neutros. Eles sabem que a neutralidade conduz ao pior”, conclui Rafael.
A tese “A psicanálise na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985): história, clínica e política” vai ser publicada como livro, pela Editora Perspectiva, com previsão de lançamento no segundo semestre de 2022.
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