Os vícios do isolamento

Como a pandemia transformou o consumo de drogas da população

O isolamento pode desencadear transtornos psicológicos e levar a um maior consumo de substâncias. Imagem: Reprodução/Pixabay

Por Marina Caiado e Vinícius Lucena

“Em dias aleatórios na semana, estava sem conseguir dormir e eu bebia. E isso virou um hábito. Não vou dizer que eram todos os dias, eu pensava: ‘Ah, só uma taça de vinho’. E aí no fim das contas quinta, sexta, sábado e domingo à noite eu bebia. O que é muito pra mim”, afirma Fabiana, relatando seu aumento do consumo de álcool na quarentena. O depoimento da jornalista é mais um dentre muitas histórias que se tornaram ainda mais comuns durante a pandemia da Covid-19.

Segundo a pesquisa Covidpsiq realizada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em conjunto com o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), a UFRGS, a UFN e a Unifesp, mais de 30% dos que estão isolados relataram um aumento no consumo de álcool e outras substâncias. O estudo relaciona esse aumento ao maior surgimento de sintomas de depressão, ansiedade e estresse entre a população. O levantamento também aponta que estudantes e desempregados apresentaram mais sintomas relacionados a transtornos mentais, e os grupos que mais aumentaram o consumo de álcool foram estudantes e profissionais da saúde.

Fabiana também é estudante, e teve sua vida diretamente influenciada por trabalhar a maior parte desse período fazendo reportagens sobre a pandemia. “O meu consumo de álcool aumentou bastante e com certeza a pandemia foi um dos fatores que interferiu nisso. Como eu estava cobrindo a pandemia diretamente, eu falava sobre isso o tempo todo, todos os dias. Da hora de acordar até a hora de dormir. E isso causou um desgaste emocional muito grande em mim, eu estava exausta e muito no limite”, relata a jornalista.

Além do consumo de álcool, Fabiana também conta que voltou a fumar durante a pandemia e aumentou muito o uso de uma anfetamina para tratamento de depressão, a qual ela diz fazer um uso abusivo. “Para poder escapar dessa realidade, eu enchia a cara; para descontar o estresse, cigarro; e pra levantar da cama de manhã, conseguir fazer minhas reportagens e ter motivação para qualquer coisa, a anfetamina”, afirma. 

Outro estudo sobre o consumo de drogas durante a pandemia foi coordenado pelo Centro de Convivência É de Lei, com apoio do Grupo de Pesquisas em Toxicologia e do Leipsi (Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos), ambos da Unicamp. Segundo o levantamento, substâncias psicoativas têm ajudado 52,1% das pessoas a lidar com o fato de estarem em uma pandemia e 43% dos entrevistados dizem fazer uso dessas substâncias inclusive durante as atividades de trabalho.

No Brasil, o trabalhador que comparece ao serviço alcoolizado ou sob os efeitos de drogas pode ser dispensado por justa causa, conforme autoriza o artigo 482, f, da CLT. Imagem: Reprodução/Pixabay

Para o psiquiatra Matheus Cheibub, assistente do GREA (Programa Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), esse aumento do consumo de drogas como uma fuga ou distração da realidade era esperado desde o início da pandemia: “Isoladas, as pessoas tendem a passar por algo que a gente costuma chamar de Transtorno de Estresse, porque elas não vêem seus familiares, o trabalho muda, o exercício físico diminui (…) E situações de estresse contínuo alteram os mediadores cerebrais. O sono fica complicado, os níveis de neurotransmissores de humor como serotonina, dopamina e noradrenalina, por exemplo, ficam alterados, o que pode levar a quadros depressivos e ansiosos. O aumento dessas doenças, consequentemente, leva os indivíduos a beberem mais, fumarem mais, e a usarem substâncias ilícitas”.

Paula, outra estudante, sentiu bastante esse estresse, e cita a solidão causada pelo isolamento como um fator importante para que seu consumo de anfetaminas e álcool aumentasse em certos momentos: “Eu via minha família uma vez por mês, então eu me sentia muito sozinha e tinha vontade de elevar o meu nível de serotonina, e eu sabia que esse era um jeito muito mais fácil de me sentir bem. Antes da pandemia, os momentos que eu tinha mais felicidade nos meus ciclos sociais envolviam esse tipo de droga, então me trazia também essas lembranças”. Paula já sofria com depressão e ansiedade, chegando a ter uma overdose antes da pandemia. Mas o aumento do consumo de drogas no isolamento atingiu várias pessoas, não apenas aquelas que já tinham dificuldades em lidar com o uso de substâncias. 

O psiquiatra Leonardo Faleiro, que trabalhou em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) Álcool e Drogas durante a pandemia, relata que houve um aumento geral na procura por atendimento nesse período: “O isolamento promoveu uma necessidade das pessoas de terem um foco e uma atenção maior na estabilização da saúde mental. O que eu vi foi: quem não tinha questões psiquiátricas ou grandes dificuldades de lidar com a saúde mental passou a ter, e quem já tinha essas dificuldades e problemas com dependência, piorou”. Ele também notou que muitas pessoas de classes econômicas mais altas passaram a buscar atendimento, além da demanda mais acentuada de atendimento a pessoas de classes mais baixas.

O custo do vício

Os aspectos econômicos do aumento do consumo de drogas também não podem ser ignorados. A Ambev, por exemplo, apesar da queda das vendas no primeiro trimestre de 2020 em comparação com 2019, passou por uma forte recuperação chegando à alta de 25,4% das vendas no terceiro trimestre, em relação ao ano anterior. Paralelamente, o Conselho Federal de Farmácia também apontou uma alta de 13,8% na venda de antidepressivos e estabilizadores de humor.

“Os dados são só dados secundários, tem gente falando que está caindo o consumo, tem gente falando que está subindo o consumo, em paralelo a isso você tem a questão do mercado de contrabando, que não paga imposto, então a renda caiu, mas o vício, não. Então, como as pessoas que perderam renda estão sustentando o vício?”, questiona o professor Guilherme de Farias Shiraishi, responsável pela disciplina “Consumo na Contemporaneidade” na Faculdade de Economia e Administração da USP. Para ele, existe a possibilidade dos usuários estarem migrando de produtos tributados para produtos contrabandeados devido à perda de renda causada pela crise econômica. “Isso também é um fator que pode estar aumentando, é uma hipótese também”, afirma.

É o caso de Fabiana, que relata que, apesar do seu remédio ser vendido legalmente, já comprou o produto por vias ilegais: “Eu tenho certeza que a anfetamina que eu uso é uma substância muito aditiva, ela é um remédio controlado e eu cheguei a comprar do ‘mercado paralelo’, digamos. Mas é algo muito controlado porque é viciante, e hoje eu não consigo ficar sem”, relata.

O mercado de produtos contrabandeados oferece à população não só o acesso a drogas ilícitas, mas preços mais acessíveis na aquisição de drogas lícitas, já que as mercadorias não passam por tributação. Imagem: Reprodução/Pixabay

O agravamento da pandemia e a imprevisibilidade desse período de crise sanitária, crise de emprego e crise econômica também influencia no poder de decisão das pessoas, segundo o professor da FEA. “Não se pode planejar o que vai ser daqui a um mês, não dá pra saber se seu comércio vai estar aberto ou não, se vai ser possível ir trabalhar ou não, se vai ter emprego ou não, então isso prejudica o planejamento. E quando não existe planejamento, provavelmente as decisões são menos acertadas”, salienta.

Além disso, o professor Guilherme também avalia os danos econômicos colaterais do consumo excessivo de substâncias. “A questão é quando a pessoa pega alguma coisa que é a renda dela para pagar o aluguel, para financiamento da casa, a educação dos filhos, e começa a tirar esse dinheiro para sustentar drogas ou bebidas. Nesse caso, a gente tá indo mais para a questão do vício e a pessoa está começando a se agredir em termos econômicos”, alerta.

“Tirando o fato também que mesmo que a pessoa esteja só usando o dinheiro, a renda discricionária dela, ou seja, aquilo que ela tem à disposição para gastar livremente, ela ainda pode estar agredindo a si mesma sem pensar no longo prazo, numa cirrose, em alguma doença cardiovascular, doenças psiquiátricas no futuro, tratamentos, internações, assim por diante”, ressalta o professor. Ou seja, as consequências de um vício para a saúde das pessoas, ao longo prazo podem significar perdas econômicas derivadas desse comportamento abusivo.

Retomando o equilíbrio

Embora os dados sejam preocupantes, os transtornos psicológicos e o consumo abusivo de substâncias podem ser controlados.  O doutor Matheus, por exemplo, lembra de um caso que o marcou, envolvendo um paciente que aumentou seu consumo de álcool na pandemia e chegou a ter problemas sérios de saúde. Ele deixou de procurar tratamento durante um período, mas a equipe do GREA persistiu em resgatá-lo através do atendimento remoto. “Essa busca ativa por ele de forma online, ligando, ou então fazendo videoconferências, foi fundamental. Ele voltou ao tratamento, e hoje está abstinente. Foi uma vitória que a gente teve, é um grãozinho de areia que a gente vê, no meio de muitos problemas, mas que deixa a gente orgulhoso”.

Fabiana e Paula também estão tendo suas pequenas vitórias, entre os altos e baixos da pandemia. Fabiana, apesar de usar quantidades cada vez maiores da anfetamina para o tratamento de depressão, está tentando parar de fumar novamente, usando adesivos de nicotina. Paula diminuiu o uso de drogas como válvula de escape e percebeu uma melhora na saúde mental: “Eu tive menos crises de ansiedade. Porque os meus níveis químicos de serotonina e endorfina não tiveram tanta oscilação quanto no período que eu usava drogas. Então eu dei uma relaxada”, explica.

Mas o mais recomendado quando se percebe sinais de transtornos psicológicos ou dependência química é procurar atendimento profissional. O doutor Leonardo frisa que para isso, é necessário que as pessoas sejam melhor informadas sobre esses transtornos, seus sintomas e suas consequências, para saber quando procurar ajuda, o que é chamado de psicoeducação. Essa seria uma ferramenta importante para diminuir os preconceitos ligados à saúde mental, e aliada a um maior investimento nos atendimentos de doenças psicológicas no SUS, poderia fazer a diferença. “Infelizmente esse governo que está aí agora está desconstruindo isso. A saúde mental fica cada vez mais marginalizada dentro do atendimento do SUS e os preconceitos das pessoas estão sendo alimentados, na verdade. E fica sendo construída essa base muito radical e muito intolerante de que isso é frescura, de que ‘pobre não tem depressão’, ‘tá deprimido, lava a louça’. E essas são ideias que permeiam a nossa sociedade e que acabam prejudicando as pessoas, porque fazem com que fujam dos atendimentos profissionais e do conhecimento sobre os problemas”, explica o psiquiatra.

Reconhecer a seriedade das doenças mentais pode ser um passo importante para buscar tratamento contra esses transtornos. Imagem: Reprodução/Pixabay

E como saber se alguém está se tornando dependente de drogas? O doutor Matheus Cheibub esclarece que a quantidade consumida é um fator importante para caracterizar a dependência, mas não o único. Pegando o álcool como exemplo, se a pessoa consome cinco doses de bebida, ou seja, cinco shots de destilado, latas de cerveja ou taças de vinho por dia, ou 20 doses por semana, isso pode ser um alerta. Se além disso, ela começa a beber doses cada vez maiores e surgem prejuízos no trabalho e na vida social e familiar, pode ser considerada dependente. É importante ficar atento, e se você ou uma pessoa próxima estão apresentando esses comportamentos, o correto é procurar um atendimento especializado. Para evitar o estresse, a depressão e a ansiedade, que podem levar ao uso abusivo de drogas, a receita é clássica: “exercícios físicos, prática de meditação, hábitos de vida saudáveis, boa alimentação, tudo isso ajuda diretamente no humor, e acaba prevenindo fatores estressores, o que vai causar uma menor incidência de doenças mentais”, conclui o psiquiatra.

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