Como o Exército influenciou o processo constituinte na redemocratização

Pressões militares nas disputas em torno da construção da Constituição de 1988 são investigadas por estudo da FFLCH

Na foto de 1985, o general Leônidas Pires Gonçalves aperta a mão do então presidente Sarney. Pires seria Ministro do Exército durante o governo Sarney.

Após 21 anos de ditadura militar, o Brasil viveu um período de grande efervescência social: o processo de redemocratização (1985-1988), marcado pela criação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e a construção da Constituição Federal (CF). O momento foi de disputa entre diversos grupos sociais e políticos que se mobilizavam para pautar suas demandas no novo texto constitucional. Entre eles estavam as Forças Armadas, que exerceram grande poder de influência na chamada Constituição Cidadã.

As demandas do Exército para a CF, a atuação dos militares como grupo de pressão e interesse e a postura das Forças Armadas ao longo do processo constituinte são os principais temas da pesquisa de mestrado de Marcus Vinícius Assis da Costa, desenvolvida junto ao Departamento de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O pesquisador explica que as pautas do Exército eram muitas: desde a não criação do Ministério da Defesa, a definição constitucional da função militar, voto dos militares nas eleições, a autonomia orçamentária em relação ao congresso, a continuidade da Justiça Militar, a não revisão da Anistia, até a incorporação das polícias militares sob comando do Exército. 

No entanto, apesar de terem obtido sucesso em vários pontos, os militares muitas vezes tinham suas demandas enfraquecidas antes de elas entrarem no texto constitucional.

“A transição democrática que o Brasil passa é marcada por muitos conflitos que fazem parte do jogo democrático e acabam levando a resultados ambíguos. São várias demandas em disputa, e de certa forma essas disputas serão acomodadas, de modo que o Exército não vai obter derrotas ou vitórias totais”, afirma Costa.

É o caso de uma das pautas mais centrais para as Forças Armadas, que foi considerada crucial pela instituição: uma destinação constitucional que garantisse o direito de agir dentro do território nacional (e não apenas externo) para “garantir a lei e a ordem”. Esta destinação constitucional do Exército como protetor armado do país contra inimigos externos e internos de fato entrou na CF no artigo 142, mas enfraquecida: sua atuação ficou subordinada aos três poderes, condicionada a convocação. 

Em 2020, diversas manifestações antidemocráticas apoiadas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmaram a possibilidade do uso do artigo 142 para justificar uma intervenção militar no governo que fechasse o Congresso ou o STF (Supremo Tribunal Federal) e pediram que isso fosse feito. Luís Roberto Barroso, membro do STF, que é a instituição intérprete da Constituição Federal, negou esta leitura, que chamou de “terraplanismo constitucional”. A OAB e a Câmara dos Deputados também repudiaram a tese. 

Uma segunda pauta que era tida como inegociável pelas Forças Armadas e obteve maior êxito foi a manutenção da Anistia de 1979, que protegia militares de uma possível apuração de crimes cometidos ao longo da ditadura, tais como tortura, execução e desaparecimentos. 

Como os militares pressionavam a Constituinte? 

Segundo Costa, o Exército só exerceu influência sobre a Assembleia Nacional Constituinte a partir de um pacto conservador entre cúpula militar e elites civis e políticas. “Ainda que tenha havido sim uma continuidade de alguns aspectos da ditadura militar, os militares não controlaram de forma alguma o processo constituinte, e também não tinham interesse em continuar a Ditadura. O Exército adotou uma postura conciliatória para com setores liberais e conservadores da sociedade e as instituições políticas”, explica.

O pesquisador aponta que o discurso da cúpula militar era de que graças à Ditadura foi possível que o país se tornasse uma democracia. “É como se fosse um presente dos militares. Como se a democratização do Estado, que teria escapado do perigo de João Goulart e o comunismo, fosse uma espécie de resultado do Golpe de 1964.”

Costa explica ainda como o Exército exercia essa influência sobre o processo constituinte: com ‘uma mão amiga para os parlamentares e um braço forte para com os grupos extra institucionais’. 

A respeito da mão amiga, o mestrando lembra a importante figura do Ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, que, junto a outros generais, vocalizou as demandas da cúpula militar na imprensa e no debate público, a partir de muitos discursos famosos.  

“Era uma grande preocupação a estratégia comunicacional. Para se ter uma ideia, o ‘Noticiário do Exército’, veículo oficial da corporação, criou em 1987 uma coluna especial, chamada ‘Temas Constitucionais’, que buscava não só inserir na agenda da ANC as demandas militares, como também criar uma imagem de unidade e credibilidade da instituição, de tecnicidade burocrata capaz de tapar ausências e falhas das instituições civis”, frisa o pesquisador. 

Ele destaca que, neste contexto, o Exército assume uma postura de conciliação e acomodação, que fica mais clara ao se analisar o uso de lobbies militares como método de influência. “O Leônidas Pires vai organizar, no gabinete do Exército, um lobby com coronéis e majores escolhidos para fazer a famosa “assessoria militar”, a fim de dialogar com os parlamentares e pressioná-los, fazendo concessões estratégicas.” 

Já no “plano extra institucional”, temos o braço forte, caracterizado pelas violentas ações militares para conter greves e manifestações populares com uso de sua força. Era um momento de muita mobilização social por parte de diferentes grupos da sociedade em torno do processo constituinte. “Tínhamos associações de bairros, sindicatos, movimentos sociais, identitários, de mulheres, negros, LGBT… E o Exército temia essa influência no processo de construção da CF.” 

Costa lembra ainda da heterogeneidade dentro do Exército. “Quando se fala em ‘demandas militares’ é crucial definir de quais grupos dentro do Exército estamos falando. O que foi levado de demanda para o processo constituinte, na verdade, partiu da cúpula do Exército, e não necessariamente refletia as vontades de todos os militares.” 

O pesquisador explica que as Forças Armadas não são um grupo monolítico e coeso. “Isso é uma aparência, e por trás desta aparente unidade existem várias facções militares em choque, muitas disputas internas que são abafadas. Pensando na própria ditadura militar, temos como exemplo o governo de Castelo Branco, que provocou o maior expurgo militar da história brasileira, não tolerando bases contrárias ao golpe de 1964.”

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*