Por Beatriz Cristina, Guilherme Roque, Isabella Velleda, Larissa Silva e Marcus De Rosa
Há muito tempo, a medicina alternativa — aquela que foge dos alicerces da medicina científica — divide opiniões. Em um lado da discussão, encontra-se a Academia, cujos membros costumam apresentar uma perspectiva crítica sobre esse tipo de medicina. Em contraponto, há a população em geral que, segundo dados oficiais, vem recorrendo a essas práticas com uma frequência e intensidade crescente. Para buscar entender como esse debate se constrói, especialistas e pesquisadores comentam os benefícios, malefícios e dificuldades da inclusão da medicina alternativa no cotidiano acadêmico e social.
Existem cinco categorias de medicina alternativa geralmente aceitas: técnicas de corpo e mente, tratamentos com base biológica, métodos manipulativos e corporais, medicina energética e sistemas médicos alternativos integrais. No total, elas abrangem quase trinta tipos de tratamentos diferentes, que buscam manipular aspectos corporais, mentais, emocionais e energéticos do enfermo, valorizando a ideia de que estes são fatores interdependentes que podem não apenas auxiliar na neutralização de uma doença, como também no tratamento de sua causa.
Ao passo em que a maioria dessas práticas são realizadas individualmente, algumas prometem benefícios por meio de atividades coletivas, como é o caso da yoga e do tai chi chuan. A primeira foi criada na Índia e reúne um conjunto de práticas físicas que envolvem movimentos e produzem força e flexibilidade para o corpo. O tai chi chuan, por sua vez, é uma arte marcial chinesa que trabalha o foco e a concentração. A procura por essas atividades aumentou nos últimos dois anos no Sistema Único de Saúde (SUS), passando de 216 mil para 315 mil, entre 2017 e 2018.
Para Rodrigo Gewehr, psicólogo e autor do artigo “Sobre as práticas tradicionais de cura: subjetividade e objetivação nas propostas terapêuticas contemporâneas”, publicado na revista Psicologia USP, a crescente busca por métodos alternativos deriva de uma lacuna deixada pela medicina científica: “Na medida em que se especializaram e que foram colocando o foco de atenção no diagnóstico, desenvolvimento e resolução dos sintomas, as medicinas ditas científicas foram gradativamente investindo no seu aspecto técnico e procedimental, deixando de lado, total ou parcialmente, os processos subjacentes à dinâmica saúde/doença.”
“Um investimento acrítico na objetividade”, continua ele, “acaba por ampliar o esvaziamento dos sujeitos envolvidos nos processos saúde/doença, como se isso não tivesse maiores consequências”. Nesse sentido, esse tipo de medicina teria tornado-se refém dos próprios procedimentos científicos que a embasam e definem. “Em casos mais grosseiros, isso retorna na forma do já tão delineado desinteresse de alguns médicos pela pessoa que se apresenta como estando doente, sob a guarida da ideia de que a objetividade científica exigiria certo distanciamento.”
Basicamente, “aspectos também fundamentais da vida, como questões de ordem valorativa, como interrogações e mesmo sensações acerca do sentido da existência”, segundo Gewehr, teriam sido deixadas de lado pela medicina científica.
O contexto brasileiro
Em maio de 2006, durante o governo Lula, foram implementadas, por meio da portaria nº 971, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PICS) no SUS. No documento, é destacado o crescente aumento deste tipo de medicina, pela Organização Mundial de Saúde, nos sistemas de saúde: “[A OMS] vem estimulando o uso da Medicina Tradicional/Medicina Complementar/Alternativa nos sistemas de saúde de forma integrada às técnicas da medicina ocidental modernas e que em seu documento ‘Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005’ preconiza o desenvolvimento de políticas observando os requisitos de segurança, eficácia, qualidade, uso racional e acesso”. Na ocasião, foram implementados apenas cinco tratamentos: acupuntura, antroposofia, fitoterapia, homeopatia e termalismo.
Em 2017, 14 novas práticas foram adotadas no catálogo do SUS. Um ano depois, em 2018, mais dez novas práticas foram somadas, totalizando 29 procedimentos terapêuticos de medicina alternativa oferecidos à população. Juntamente com essa adoção, o ministério da saúde também lançou um glossário de termos para difusão das PICS. As práticas atualmente oferecidas estão descritas na ilustração abaixo.
Segundo dados do Ministério da Saúde, somente em 2017 foram realizados mais de 1,4 milhão de atendimentos aos usuários do SUS, em práticas como acupuntura, auriculoterapia e yoga. Os dados também mostram um aumento na procura por este tipo de prática: em oito anos, o número de atendimentos no SUS cresceu 670%, passando de 271 mil, em 2008, para 2,1 milhões em 2016.
Ainda assim, essa implementação sofreu diversas críticas por parte dos estudiosos da medicina científica. No momento da última efetivação das dez novas práticas, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Carlos Vital, se posicionou contrário à decisão: “Nós não temos nenhuma prática alternativa que seja reconhecida pelo CFM. Há uma especialidade médica, a acupuntura, que é feita de maneira completamente diferente do que está colocado no SUS como uma prática integrativa. A prática da acupuntura como especialidade médica é feita com base em evidências científicas”. Vital também comentou, em entrevista à Jovem Pan News, que considera esse adoção um desperdício de verbas públicas: “A aplicação de verbas nessa área onera o sistema, é um desperdício e agrava ainda mais o quadro do SUS com carências e faltas.”
O embate entre academia e sociedade
O confronto entre academia e sociedade não é novo. Enquanto parte da sociedade vêm demonstrando pensamento acolhedor à medicina alternativa, como é possível deduzir a partir do aumento da procura por este tipo de prática, muitos adeptos da medicina científica — em geral, acadêmicos — ainda veem a medicina alternativa como algo a ser combatido e desestimulado.
Tal é o exemplo do CFM, órgão competente pelas atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica, que, além de ter veiculado a fala de Carlos Vital, também já emitiu diversas outras notas de repúdio sobre o tema em diferentes ocasiões. Exemplo disso foi nota expedida em março de 2018, que alegava que “tais práticas alternativas não apresentam resultados e eficácia comprovados cientificamente”, o que “torna a prescrição e o uso desses procedimentos proibidos aos médicos.”
Edzard Ernst, dentro do contexto de guerra contra essa inclusão, também é uma figura de grande destaque. O médico acadêmico britânico, pesquisador especializado no estudo da medicina complementar e alternativa, e autor de livros best-sellers, já foi considerado o maior inimigo da “homeopatia, acupuntura e companhia”, apesar de ter criado a primeira disciplina de medicina complementar no mundo.
Ernst demonstra grande desconfiabilidade e descrença, além de um certo “charlatanismo” nas pesquisas atuais acerca da medicina alternativa. “No meu ponto de vista, [os pesquisadores de medicina alternativa] usam a pesquisa como um meio de se promover”, disse em entrevista à revista Saúde. “A pesquisa é uma ferramenta para testar hipóteses. Esses pesquisadores muito frequentemente só querem confirmar os seus pontos de vista, o que basicamente é um mau uso da ciência.”
Na introdução de seu livro “SCAM: So-Called Alternative Medicine”, o pesquisador ainda destacou, de maneira quase cômica que “se uma terapia não funciona, ela não pode ser uma alternativa para a medicina. Se ela funciona, ela não pertence à medicina alternativa, e sim à medicina.”
Apesar de sua reputação, Ernst já teceu diversos comentários que podem ser considerados um “meio-termo” no debate entre os dois tipos de medicina. “Se a medicina alternativa é tão popular, então seguramente é porque ela preenche alguns buracos da medicina tradicional”, argumentou. “E isso se faz com pesquisa. Precisamos lembrar na medicina tradicional que olhar o cenário completo, o ser humano como um todo, é algo que está no âmago de nossa prática.”
Os efeitos do embate
O tom esperançoso, entretanto, não neutraliza os efeitos negativos que essa falta de aceitação implica na produção de conhecimento acadêmico na área. A pesquisadora Nísia de Paula e Souza — que desenvolveu estudos acerca do uso da fitoterapia através do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo — conta que sofreu dificuldade na obtenção de credibilidade de suas pesquisas dentro da academia. Como consequência, a academia paradoxalmente dificulta a formação de pessoas capacitadas para a aplicação correta das medicinas alternativas.
Assim, Souza argumenta que, deste embate, a própria população sai prejudicada: “Considerando que o sistema de saúde brasileiro está sucateado e que a medicina alopática envolve altos custos inacessíveis à maioria da população, bem como a presença de efeitos colaterais”, diz, “o uso das plantas medicinais poderia ser um caminho de colaboração com a prevenção e cura de doenças da população”.
Ainda assim, ela não nega que esse cenário venha mudando ao longo do tempo. Segundo Souza, muitas faculdades de medicina já incluem em suas grades a disciplina “Medicina e Espiritualidade”, e em países desenvolvidos como a Inglaterra, por exemplo, terapias energéticas como o reiki também já fazem parte dos serviços públicos de saúde. “O grande problema”, pondera ela, “é que faltam profissionais preparados oficialmente para empregá-las. Foi um avanço, mas as universidades têm de se abrir e fazer mais pesquisas, oferecer cursos e formação adequada pois há muita má fé e oportunismo no mercado de ofertas destas terapias, o que já está se constituindo em uma nova forma de explorar a já nossa tão sofrida população na área da saúde.”
Similarmente, Rodrigo Gewehr também apresenta algumas ressalvas quanto à expansão do uso de práticas alternativas: “A ‘medicina científica’ opera de mãos dadas com o capitalismo, e só admite o que não consegue explicar se for possível cooptar essa prática alternativa, domesticá-la e potencializá-la para seu próprio proveito, o que implica a ideia de poder integrar o ‘alternativo’ a seus pressupostos.”
Ele ressalta que é possível que, dentro desse contexto, esteja-se construindo uma compreensão mais ampla dos processos vivos, abrangendo, enfim, outros aspectos da existência humana “que em geral restam excluídas, tratadas sem maiores questionamentos como crendices, ilusão dogmática, infantilismo existencial”. Até que se prove o contrário, porém, “isso é apenas utopia, e as utopias são também terreno fértil para o capitalismo.”
A medicina alternativa como válvula de escape
Patrícia Leme, do grupo Bem Estar, que oferece cursos e práticas regulares gratuitas de Ioga e Meditação à comunidade universitária da USP São Carlos, exalta o modo que a prática vêm sendo trabalhada perante a sociedade, e de que maneira isso afeta a vida das pessoas: “A meditação e a prática de yoga têm colaborado muito para o autoconhecimento, na maneira como as pessoas lidam com o estresse da vida cotidiana, auxiliando no equilíbrio emocional. Além de um exercício físico, trata-se de um conjunto de etapas que pretendem preparar o corpo e mente para a meditação, conduzindo o praticante ao autoconhecimento”.
Leme explica os efeitos práticos da yoga nos estudantes com que trabalha: “as posturas da yoga, quando praticados em conjunto com a meditação, fortalecem e dão consistência aos benefícios da prática da meditação”, comenta. “Dessa forma, a meditação associada à prática de yoga asanas seria uma forma mais efetiva de suavizar, e até mesmo eliminar, os efeitos do estresse nos participantes.”
A pesquisadora ainda ressalta que as técnicas de meditação sofrem preconceito até mesmo por parte dos interessados na prática: “Embora traga tantos benefícios para saúde e sensação de bem-estar em geral, a prática de meditação no ambiente acadêmico ainda é fonte de desconhecimento e preconceitos. Algumas pessoas consideram que são muito agitadas para conseguir meditar ou que a meditação é ligada à religião.”
A educadora conta ainda que, se opondo a estas posições, “as técnicas de meditação têm se tornado mais populares no Ocidente e nos últimos anos têm sido cada vez mais usadas como práticas terapêuticas com vistas à melhoria da qualidade de vida”, e explica as alterações biológicas positivas da meditação: “mais do que relaxar, a meditação é capaz de modificar as estruturas e as funções cerebrais”. Leme encerra sua fala citando a médica Elisa Kozasa, do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein: “Aprender a viver o presente é o caminho para regular nossas emoções e lidar com o estresse e os entraves que todo mundo tem. Isso não quer dizer que a meditação vai resolver os problemas ou curar a doença, mas prepara você para enfrentar cada etapa deles e se fortalecer.”
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