Programa TransCidadania traz impactos positivos para as vidas de transexuais e travestis

Mesmo com benefícios, pesquisadora destaca necessidade de olhar crítico para promover melhorias

De acordo com a ONG Transgender Europe, Brasil é um dos países de maior violência contra transexuais e travestis. Imagem: Torbakhopper - Flickr

Uma análise feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com base em dados colhidos nas bases regionais da entidade, estima que 90% das pessoas trans recorrem à prostituição como profissão em ao menos algum momento da vida. Essa informação expõe a vulnerabilidade na qual vive essa parcela da população. Pensando nisso, a pesquisadora Michelle Borges Miranda, mais conhecida como Bia Michelle, analisou em seu mestrado o desenvolvimento do TransCidadania, programa da Prefeitura de São Paulo que tem como proposta fortalecer atividades de colocação profissional, reintegração e resgate da cidadania para travestis e transexuais. As conclusões mostram que o programa trouxe inovações que causaram impactos significativos na vida dos participantes.

A pesquisadora explica que passou dois anos analisando o programa em seus primeiros anos, de 2015 a 2016. O estudo utilizou alguns métodos antropológicos, com entrevistas semi-estruturadas e pesquisa de campo. “Eu acompanhei as duas primeiras turmas. No final desse tempo, comecei a coletar as entrevistas, o que possibilitou que os participantes se abrissem bastante para falar da vida antes e depois do programa”, relata.

Pessoas transexuais são aquelas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico, ou seja, que foi identificada com um gênero ao nascer, mas se reconhece como o gênero oposto. Já o termo travesti está ligado à expressões de gênero, uma identidade feminina. As travestis podem ou não ter desconforto com seu sexo de nascimento, sendo muitas vezes uma questão de identificação com qual dos dois termos a pessoa prefere ser relacionada.

Bia relata que, na cidade de São Paulo, as leis que tratavam de direitos trans, como a questão do nome social e da hormonoterapia, não tinham resultados tão efetivos, já que a população mais vulnerável não tem conhecimentos de todos os instrumentos que as amparam. Assim, o TransCidadania buscou trazer inovações para reverter essa situação a partir de dois principais fatores. O primeiro deles foi incorporar o conjunto de legislações já existentes na realidade dos participantes, para que tivessem conhecimento e acesso a elas. O segundo está relacionado à transversalidade da política, conceito trazido pelo prefeito responsável pela criação do programa, Fernando Haddad. A ideia é integrar as coordenadorias e secretarias, estimulando uma articulação conjunta na tomada de decisões e promovendo um maior alcance das atuações.

O programa buscou parcerias com escolas municipais, que recebiam uma formação concedida pela equipe do programa, e recebiam os participantes em aulas noturnas com o objetivo de oferecer o conteúdo do ensino fundamental e médio para que os integrantes pudessem conseguir os diplomas escolares. Além disso, também haviam cursos técnicos e livres sobre cidadania, direitos humanos, gênero e ativismo, o que possibilita a formação política, já que a ideia do projeto é que os participantes também fossem agentes ativos de suas histórias. Os acompanhamentos com os psicólogos, pedagogos e assistentes sociais, todos de uma equipe própria e específica para o programa, também eram obrigatórios.

“Antes do TransCidadania a Amanda Marfree era o que? Era mais uma garota de programa, transexual, que tava na rua, não sabia ter direitos. Esse programa me tirou, me deu visão do mundo como um todo” – Amanda Marfree, participante do programa em entrevista à Bia

Os benefícios trazidos pelo programa foram muitos, mas em sua análise pela visão da política pública, Bia destaca que é necessário também ter um olhar crítico, apontando os problemas para que ele continue impactando cada vez mais vidas. O primeiro deles é que, após uma primeira experiência concentrada mais ao centro da cidade, foram inauguradas coordenações em bairros mais distantes, abrangente as zonas sul, norte, leste e oeste. Porém, o número de vagas para o programa continuou o mesmo, só que fragmentado entre as quatro regiões. Além disso, o fato do TransCidadania ser um programa e não um projeto de lei faz com que ele dependa dos gestores que assumem a Prefeitura, o que coloca-o em risco.

Outro ponto de atenção para a pesquisadora é o fato do programa durar apenas dois anos. “É muito pouco tempo para fazer uma formação educacional de ensino fundamental e médio, capacitação profissional e preparação para o mercado de trabalho”, explica. Isso acontece, porém, porque a transferência de renda oferecida pelo projeto como incentivo é garantida pelo Programa Operação Trabalho (POT), um projeto de lei que assegura a bolsa por apenas dois anos.

“Aí pra fora as pessoas me tratam como qualquer coisa. Quando eu chego aqui eu sinto que as pessoas me tratam como gente” – Cristine Xavier, participante do programa em relato à pesquisadora

Bia acredita que a pesquisa traz visibilidade política para um público que costuma ser silenciado e que, quando consegue chegar até o público geral é em forma de deboche. Ela diz que programas como esse, podem incentivar outras iniciativas semelhantes e que o estudo permite uma contribuição da Universidade para a sociedade, propiciando um feedback necessário para que a política possa ser cada vez melhor. “O espaço se tornou uma referência de cuidado. Muitos trans que estavam em situação mais delicada acabavam indo pra sede do TransCidadania sabendo que não participariam do programa, mas que seriam acolhidas”, conclui.

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