Mulheres que sofreram violências domésticas enfrentam lutas diárias por causa de suas cicatrizes. De acordo com Flávia Duarte, autora da tese de doutorado “Para além do que se vê: cicatrizes da violência doméstica contra mulheres”, a experiência das agressões não se encerra com o último golpe: é vivida e sentida todos os dias pela convivência com os resultados finais das lesões – as cicatrizes.
Essa convivência afeta diretamente a perspectiva de futuro das vítimas. Flávia explica que isso está relacionado ao conceito de temporalidade da Psicologia, o qual concebe o tempo de uma forma subjetiva, não cronológica ou mensurável. “Existe a sensação de que o tempo não passa, porque o passado está sendo vivido todos os dias sob a forma daquela cicatriz. O passado, então, se torna o presente, e o futuro dessas mulheres é marcado pela vontade de ficar bem e de recuperar o tempo perdido”, diz a pesquisadora. Isso quer dizer que as cicatrizes são lembretes constantes do que viveram no contexto de violência doméstica, tornando-se a forma física de um trauma psicológico.
A partir de entrevistas com quatro vítimas, a pesquisadora identificou também alguns impactos sócio-psicológicos na realidade de quem sofreu violência doméstica. Um deles é o sentimento de vergonha ao mostrar as próprias cicatrizes, recorrendo ao uso de roupas estrategicamente pensadas para cobri-las. Flávia explica que isso está associado ao fato de as cicatrizes chamarem atenção, denunciarem ao mundo que alguma coisa aconteceu e fugiu do controle: “As pessoas olham e, mesmo que não perguntem de onde vieram, existe uma indagação não-verbal feita ali. As mulheres percebem que estão olhando para as cicatrizes que seus maridos fizeram nelas e sempre retornam àquela situação”.
Nesse sentido, elas buscam intervenções estéticas para atenuar os sinais mais evidentes das agressões, como cirurgias plásticas e tatuagens. A psicóloga explica que são meros paliativos, uma vez que, por mais que imperceptíveis, as cicatrizes continuam a incomodar por estarem vinculadas a um passado psicologicamente traumático.
Essa vergonha, além de forçá-las a calcular aspectos do cotidiano que a maioria das pessoas não calcula, como checar se a manga da camiseta é longa o bastante para cobrir uma cicatriz no braço, impede-as de se relacionar com outras pessoas de novo. De acordo com Flávia, elas não conseguem confiar em alguém com tanta facilidade quanto antes das agressões, em especial quando se trata de homens. Ainda que exista o desejo por um novo relacionamento, elas sentem medo e constrangimento em torno das próprias cicatrizes, o que as impede de viver novas histórias.
Além disso, o olhar do outro incomoda a ponto de fazê-las mentir sobre a origem das cicatrizes. Coincidentemente, as quatro entrevistadas de Flávia inventaram que advieram de um acidente de carro. A pesquisadora reflete sobre o significado simbólico disso: “Acidente é acidente e não compromete a moral de quem o sofre. Mas quando a cicatriz é de uma violência doméstica, existe um constrangimento, ainda mais por vivermos em uma sociedade em que a mulher é sempre culpabilizada, mesmo sendo a vítima”.
Flávia narra que a culpabilização das vítimas vem inclusive de órgãos estatais. Ao contar a história de uma de suas entrevistadas, esfaqueada nove vezes pelo marido e encaminhada para uma Delegacia da Mulher imediatamente após suas cirurgias, ela frisa o descaso da delegada encarregada do caso. “O marido dessa moça só foi preso depois que ela entrou em contato com uma instituição de acolhimento a mulheres vítimas de violência doméstica, mesmo que ela mostrasse as postagens dele nas redes sociais indicando para onde tinha fugido”, diz Flávia.
A partir do caso desta moça, a pesquisadora reflete sobre como as questões financeiras se organizam depois de violências domésticas. Com os maridos presos, mulheres dificilmente recebem pensão e, por conta dos reflexos das agressões, têm dificuldades em trabalhar. A entrevistada perdeu a força em um dos braços ao ser esfaqueada e não consegue realizar sua função de auxiliar de enfermeira por não conseguir segurar um paciente, por exemplo. Outra vítima que Flávia entrevistou era dentista e perdeu todo investimento que fez na carreira, uma vez que teve os tendões da mão lesionados e não conseguia movimentá-la o bastante para exercer a profissão.
“Tudo isso restringe as possibilidades de trabalho. A cicatriz é a forma final de uma lesão, mas internamente podem ter músculos e nervos afetados para o resto da vida. E também tem as dores: outra mulher teve as pernas furadas por chave de fenda e, no inverno, ela sente muita dor, a ponto de não conseguir mais fazer atividades em casa”, diz a psicóloga.
Flávia ainda propõe uma reflexão sobre discussões de igualdade de gênero. “As agressões contra essas mulheres que entrevistei aconteceram no momento em que elas deixaram de se sujeitar ao que os maridos mandavam e se colocaram como sujeitas da própria vida. Os homens não conseguiram lidar com essa falta do controle, tampouco olhar para elas como iguais, e decidiram castigá-las, marcá-las para o resto da vida. Então, precisamos discutir ética, gênero, respeito com o outro, e, enquanto mulheres, temos que entender que ninguém está totalmente imune de passar por isso, nos unir, exercitar empatia, militar pela causa”, argumenta.
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