O período da adolescência é marcado por certas características que se repetem no nosso imaginário. Independentes dos diferentes gostos, classes sociais e vontades, jovens vivem individualmente suas descobertas e a vontade de se encaixar em um grupo. Porém, adolescentes que adquirem doenças crônicas lidam com as questões da transição para a vida adulta enquanto aprendem a conviver com sua condição de saúde. A pediatra Silvia Maria Nigro, desenvolveu, na Faculdade de Medicina da USP, a tese de doutorado Qualidade de vida, adolescência e doença crônica, onde estudou como funcionava a percepção de adolescentes que construíam uma vida juntamente com uma enfermidade.
As Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são aquelas que tem longa duração e são causadas por fatores genéticos, fisiológicos, ambientais e comportamentais. Ou seja, enfermidades das quais o paciente terá que reaprender a viver sob as condições impostas pela nova situação. Estima-se, de acordo com relatório de 2018 da OMS, que as quatro mais incidentes – câncer, diabetes, doenças pulmonares e cardiovasculares – são responsáveis por 71% das mortes no mundo.
A pediatra explica que a pesquisa veio do avanço da medicina combinada com a necessidade que os pacientes adolescentes passaram a ter mais recentemente. Cerca de 30 anos atrás, a pediatria era focada em infectologia, pois a mortalidade de jovens por doenças agudas e infecciosas, como meningite, era muito maior. O preparo dos médicos era em busca dessa temática. “Ao longo desses anos, a epidemiologia das doenças mudou. As crianças que nasciam com doenças graves não chegavam à adolescência e à fase adulta. Hoje, elas têm essa sobrevida porque a medicina melhorou. Ao mesmo tempo que doenças crônicas não transmissíveis que pertenciam à fase adulta, com a mudança de estilo de vida, há adolescentes de 15, 18 anos diabéticos e hipertensos. Você precisa cuidar de doenças de adulto com pacientes que não são crianças e nem adultos”.
Desta forma, Silvia buscou adolescentes de 12 a 18 anos que fossem pacientes de doenças crônicas e tivessem atendimento no Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Entre a grande variedade de patologias atendidas, certas foram pré-selecionadas de acordo com os critérios do estudo. A pesquisadora explica seus métodos de exclusão: doenças como HIV positivo e câncer mudam a perspectiva de finitude de um adolescente. Certas doenças dermatológicas que intervém bruscamente na aparência do jovem, pode afetar excessivamente a sua forma de se colocar socialmente. Já as deficiências intelectuais não se encaixavam no método utilizado.
Os pacientes escolhidos sofriam de diabetes (tipo 1 e 2), hipertensão, fibrose cística, esclerodermia, anemia falciforme, alergia alimentar, cardiopatia, síndrome nefrótica e lúpus eritematoso sistêmico. Isto posto, 31 jovens foram separados em cinco grupos focais com as faixas de 12 a 14 anos e 15 a 18 anos. A partir das entrevistas grupais, a pesquisadora coletou informações por meio da interação entre o círculo.
Preocupações da adolescência
O grupo focal destacou algumas temáticas que se repetiram nas conversas. “Comparei os temas que surgiram na entrevista, quais coincidem, quais são díspares e quais os entrevistados deram importância. E comparei os temas que surgiram dos adolescentes mais jovens, meninos e meninas”, explica Silvia. “Estes surgiram a partir das perguntas que eu fazia nas entrevistas. Então relacionei com a quantidade de entrevistados”.
A tese traz dados sobre uma pesquisa qualitativa publicada em 2016, que mostrava os significados de felicidade para jovens de 15 e 16 anos. Temas como estar saudável, gostar da aparência, ter família e uma rede amigos e ser reconhecido pelo seu meio social, apareceram com frequência nas entrevistas. Não foi diferente no doutorado de Silvia. “Usei jovens que não tem a saúde perfeita. Porque a adolescência chama a vitalidade, saúde. Ter uma doença crônica é um contraste. Ter uma vitalidade, desejos e independência que vêm da adolescência. Mas eles têm tudo isso, igual”.
“Eles têm uma percepção da qualidade de vida muito boa”, começa a pediatra. Os adolescentes que participaram do grupo de entrevista comentaram momentos que lhes deixam felizes. Oportunidades de prática de esporte, convívio social (parentes e amigos), tempo nas mídias sociais ou atividades relacionadas à música, foram listados na sua percepção de felicidade.
O estudo usou um leque de doenças que podem interferir na imagem corporal. No entanto, esse quesito é “importante para qualquer adolescente”, explica Silvia, já que é nessa fase que jovens ganham 50% do seu peso corporal e 25% da sua estatura final. Essas profundas mudanças físicas, interferem na forma que ele se vê e como o mundo o vê. Desde adolescentes obesos que não se encaixam no padrão social da magreza, até outros que podem ter deformidade devido à problemas reumatológicos ou baixa estatura gerada por cardiopatias.
Ela aponta que jovens que adquiriram a doença antes da aparência se tornar um fator relevante em suas vidas, estão mais habituadas às mudanças decorrentes dos sintomas e o meio em que vive já está acostumado com sua figura. Assim como jovens mais novos, são mais positivos com a sua aparência. Em um dos depoimentos publicados pela tese diz “… eu queria ter nascido com Lúpus já… desde o começo já… teria acostumado de vez, rápido”, por um menino de 15 anos.
O cuidado parental e de amigos foi outro ponto relevante. O meio social é importante para todos os jovens, mas esse grupo enxerga na rede de apoio a ajuda para enfrentar as limitações impostas pela doença. Principalmente com os pais, a relação é ambivalente, pois enquanto é comum o desejo de conquistar independência e que não é mais uma criança, eles contam com a ajuda deles no cuidado com a doença. Da mesma forma que percebe a atenção e dedicação de amigos, os deixam mais confortáveis no convívio social, mas a possibilidade de ser uma preocupação os deixam angustiados.
Jovens costumam ter projetos de vida. Sonham com uma carreira e vida adulta, por mais que seja apenas uma versão fantasiosa. A mostra de pacientes infanto-juvenis da Santa Casa de São Paulo não difere de qualquer outro completamente saudável. Esses conseguem olhar para frente, desejando a melhora da doença e uma carreira. Seja como jogador de futebol, ou a versão mais madura, a de um treinador que fez Educação Física.
Muitos assuntos coincidiram entre jovens saudáveis e o grupo entrevistado. Porém, a condição não-saudável os fazem criar uma percepção da doença e mudam o ritmo do desenvolvimento pessoal. “ A minha conclusão é que a doença crônica dá para o adolescente ao mesmo tempo que uma série de limitações, uma possibilidade de se desenvolver”.
O assunto que surpreendeu na pesquisa foi o relacionamento médico-paciente. Os pacientes relataram diferentes percepções sobre a forma como são tratados em consultórios. A pediatra conta que o plano terapêutico é feito para atender os adolescentes sem acompanhamento dos pais. Mas muitas vezes não é assim por uma questão estrutural do atendimento hospital. “Eles querem participar do processo terapêutico, eles querem ser tratados como indivíduos e não como ‘filho de alguém’”.
Ela aponta, ainda, que o tratamento ser bem-sucedido envolve colocar o jovem como agente, “Dessa forma ele não precisa ser vítima da sua doença, pode ser sujeito do seu tratamento e isso melhora sua qualidade de vida”. Contudo, nem todos os profissionais os tratam com a individualidade e autonomia que eles precisam, e principalmente, com empatia. Entender como ele pensa, como é a transição da infância para o período adulto e os fazerem ‘sentir enxergados’.
A boa relação entre médicos e pacientes favorecem a adesão ao tratamento e a confiança entre as partes. Um depoimento de uma jovem de 15 anos, ressalta profissionais que ‘falam de igual para igual, eles dão conselhos’ bem como os verem de igual para igual. Alguns elogiaram muito os médicos residentes que, por serem mais novos, têm maior facilidade de se comunicar e criar um vínculo empático.
A resiliência é uma resultante da sua forma de viver. A propriedade é descrita como a capacidade de uma pessoa sofrer uma adversidade e conseguir sair dessa situação, lidando com o problema e superando obstáculos. Nem todos têm a mesma quantidade de resiliência que outros, e isso relaciona-se com fatores como mais idade, menos evasão escolar. Mas ela permite que ele e a família se ajustem à doença, tanto comportamento quanto sentimento, e consigam ainda assim, terem uma vida feliz e satisfatória.
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