Profilaxia Pré-Exposição ao HIV permite mudanças no comportamento social do usuário

A pílula contém dois medicamentos antirretrovirais: tenofovir e entricitabina. Foto: Justin Sullivan/Getty Images

A Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) é uma medicação que previne a infecção pelo HIV por meio da administração diária de uma pílula (Truvada), a qual bloqueia alguns caminhos que o vírus usa para infectar o organismo. Seu uso possibilita que os usuários mudem seus comportamentos, o que traz conflitos, outra forma de lidar com seus desejos sexuais e a criação de uma identidade social no processo de individualização, onde o sujeito é o principal responsável por sua própria prevenção e as consequências disso.

Os dados são da dissertação de mestrado Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) no contexto do processo de individualização e saúde defendida por Roberto Rubem da Silva Brandão na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. O objetivo do pesquisador era entender como o campo da saúde produz a individualização e explorar os efeitos sociais da PrEP.

Brandão fez uma análise documental das postagens de um grupo norte-americano no Facebook, formado majoritariamente por homens gays, bissexuais e que fazem sexo com outros homens e que eram usuários da profilaxia. A maior incidência de novos casos de HIV ocorre em pessoas desses grupos.

Processo de individualização não é individualismo

De acordo com o pesquisador, o processo de individualização é uma dinâmica social, que não se relaciona ao individualismo, mas sim aos indivíduos garantindo sua própria prevenção, decidindo se vão ou não tomar o remédio e como irão fazê-lo. Algumas vezes a produção tecnológica realça esse processo, como no caso da PrEP, no qual um produto tecnológico (a profilaxia) é criado de acordo com os gostos e necessidades dos indivíduos (que têm como necessidade a prevenção do vírus). É um processo duplo que se dá no conflito entre o indivíduo e a instituição médica, que deixa de ser aquela que manda o indivíduo fazer alguma coisa para ser aquela em que os indivíduos demandam alguma coisa para si. “Essa é a grande transformação do processo de individualização. Não são mais as instituições que mandam no indivíduo, é o indivíduo que demanda das instituições para o bem dele”.

Brandão conseguiu avaliar alterações causadas nos usuários da PrEP principalmente em três esferas: a dos conflitos da experiência; a da produção de desejos e prazeres sexuais e a da produção de identidade no contexto de individualização. Na primeira esfera, os conflitos eram causados essencialmente porque, ao utilizar a profilaxia, não é mais necessário o uso do preservativo nas relações sexuais para prevenir HIV. Mesmo que os participantes do grupo, que se denominavam prEPsters, não estivessem imunes à transmissão de DSTs como gonorreia, sífilis e hepatite, boa parte deles abolia o uso da camisinha, por banalizar a experiência de pegar uma DST. Entretanto, não era um comportamento absoluto e nem todos os participantes descartavam o preservativo.

Outro conflito era causado pelo uso de drogas e remédios associados ao uso da PrEP, ao qual o pesquisador chama de “gerenciamento de riscos”, que alguns participantes relatavam usar drogas estimulantes, como cocaína, junto com a Truvada, por saberem de antemão que iriam se expor a situações de risco.  Também foi relatado o uso de antibióticos para reduzir a chance de contrair alguma doença bacteriana como sífilis ou gonorreia, o que não possui validação alguma pela comunidade científica e é considerado muito arriscado.

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Preservativo é melhor forma de prevenção contra vários tipos de DSTs, além do HIV. Foto: Pixabay

O não uso de preservativo também afeta a segunda esfera, do desejo. O pesquisador recorda o termo bareback, usado para definir as práticas sexuais entre homens sem uso de camisinha por escolha. Enquanto na década de 90 os barebacks eram quase considerados fora da lei, hoje são vistos como pacientes disciplinados, que tomam seu remédio todos os dias e são considerados “heróis da epidemia”, porque de certa forma estão “perseguindo seu desejo”. Outro ponto dessa esfera é que o apelo à sensação física é muito grande. “Tomar PrEP também faz sentido porque aumenta a sensibilidade, o prazer e a sensação de um ‘sexo natural’”, explica.

A terceira e última esfera trata da produção de uma identidade social. Socialmente, esses indivíduos, ao se relacionarem com os outros, passam a desempenhar um papel social, ou seja, de identidade social. Pensando em normas, a ação deles é regida por uma noção de busca do prazer irremediável e também se prevenir do HIV. Os usuários também buscam se dissociar de uma população que historicamente é associada à dissidência de HIV: “Eles se vêem socialmente nesse lugar, de ativistas contra a epidemia, mas não só isso, também como “heróis” que vão salvar a epidemia e impedir as novas infecções”, comenta Brandão. Há ainda os conflitos que esses indivíduos apresentam quando se relacionam uns com os outros: de aceitação, às vezes com os parceiros, mas essencialmente consigo mesmos.

O pesquisador ressalta que o processo de medicalização da epidemia não extingue problemas históricos como a discriminação e o estigma atrelado a doença. “O remédio não resolve problema social. Ele atenua condições das pessoas, mas as questões estruturais da epidemia foram deixadas de lado. O HIV e a Aids destoam muito de outras epidemias porque é um caso social e político, não só biológico”. Ele destaca que as pessoas pobres, pretas e periféricas são as que têm menos acesso aos serviços de saúde, não aparecendo no projeto de medicalização. 70% das pessoas que estão tomando PrEP nos EUA são brancas, enquanto 60% das novas infecções são em negros.

Para Brandão a pesquisa é importante porque quando se faz uma política pública de saúde tende-se a focar apenas no aspecto biomédico da intervenção. Porém, qualquer interferência biomédica nas pessoas é também uma interferência social. “Acho que meu trabalho talvez seja o primeiro produzido no Brasil que traz essa dimensão social e política para discutir a emergência da PrEP como incorporação tecnológica na epidemia de HIV e Aids. Isso é uma produção muito relevante para o campo da saúde e também para as pessoas que estão tomando o remédio e querem saber mais”.

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