Poliandria pode ser influenciada por ambiente sonoro e agir sobre evolução de armamentos masculinos

O ESTUDO DO COMPORTAMENTO REPRODUTIVO EM QUE FÊMEAS COPULAM COM MAIS DE UM MACHO DURANTE PERÍODO FÉRTIL TEM EXPANDIDO NOÇÕES ACERCA DA SELEÇÃO SEXUAL E SEUS MECANISMOS

Poliandria é mais regra do que exceção no mundo animal. Imagens: Wikipedia/ Colagem: Camila Mazzotto

A difusão de pesquisas vinculadas ao sexo no mundo animal pode se apresentar como um desafio quando pensamos em seus possíveis desdobramentos entre o público. É o que assinala Erika Marques de Santana, pesquisadora do Instituto de Biociências da USP. “A gente anda sob uma linha muito tênue quando estudamos relações sexuais entre animais, porque as pessoas tendem a antropomorfizar os bichos e nós temos que tomar muito cuidado ao expor nossos resultados, evitando criar juízos de valor sobre os comportamentos reprodutivos adotados por eles”. Santana é mestre e doutora em Ecologia pela Universidade de São Paulo. A sua tese de doutorado, Causas e consequências da poliandria, defendida em setembro de 2018, identificou um novo mecanismo que pode influenciar o grau de poliandria entre grilos e as consequências desse comportamento para a evolução de armamentos masculinos em rãs.

No ambiente natural, a diferenciação entre machos e fêmeas se dá por meio da observação das características de seus gametas, células responsáveis pela reprodução sexuada. Enquanto os machos produzem grandes quantidades de gametas pequenos (espermatozóides), as fêmeas produzem poucos gametas grandes (óvulos). Assim, a taxa reprodutiva potencial dos machos é maior, o que significa que machos têm potencial para deixar muito mais filhotes ao longo da vida do que fêmeas. Além disso, o sucesso reprodutivo de um macho depende principalmente do número de fêmeas com as quais ele consegue copular, ao passo que o sucesso reprodutivo de uma fêmea estaria relacionado somente com a qualidade do macho com o qual ela copularia. Essa atribuição de papéis sexuais para machos e fêmeas é conhecida como paradigma Darwin-Bateman, caracterizado pela noção de que machos sempre competem entre si pelo acesso às fêmeas e estas sempre escolhem de forma criteriosa os pais de seus filhotes.

Machos competem e fêmeas escolhem?

Desde meados de 1980, porém, o aumento do acesso às técnicas de biologia molecular permitiu que pesquisadores pudessem testar a paternidade dos filhotes em outras espécies de animais além do ser humano. Percebeu-se, então, que fêmeas de espécies consideradas monogâmicas tinham filhotes que não eram dos pais que os criavam, contrariando as previsões do paradigma Darwin-Bateman. Esse comportamento reprodutivo, no qual as fêmeas copulam com mais de um macho durante o período fértil, recebe o nome de poliandria.

“Hoje, sabemos que as fêmeas podem copular com mais de um macho durante o período reprodutivo e pode ser que não necessariamente para deixar mais filhotinhos, mas porque elas podem ganhar outras vantagens com isso, como o aumento da variabilidade genética da prole, gerando filhotes mais resistentes às adversidades do ambiente, e mais recursos alimentares disponíveis, considerando os machos que oferecem comida em troca de sexo, por exemplo” explica Santana.

Ambiente social e poliandria

Ao longo dos últimos quatro anos, Erika M. Santana buscou responder duas questões gerais que, segundo ela, ainda são pouco exploradas na literatura de seleção sexual e para as quais há pouco consenso entre a comunidade científica: quais são as causas e as consequências da poliandria?

A pesquisadora decidiu entender as causas desse comportamento reprodutivo em grilos australianos da espécie Teleogryllus commodus, na University of New South Wales, em Sydney, Austrália, como parte de seu doutorado sanduíche financiado pela CAPES. A escolha de tal espécie se deu pelo fato de suas fêmeas serem muito poliândricas, optarem pelos machos de acordo com as características do canto dos machos, e de não haver evidências de benefícios materiais ou genéticos da poliandria para esses indivíduos. Além disso, segundo Santana, trata-se de uma espécie que, manipulada em laboratório, se comporta sob um nível de estresse baixo o suficiente para continuar fazendo o que faria se estivesse em ambiente natural.

Na cópula dos grilos, o macho transfere uma espécie de “cápsula de esperma” – o espermatóforo – à fêmea, que regula por quanto tempo a estrutura ficará anexada a sua genitália. Vídeo: Erika Marques de Santana

Estudos anteriores mostraram que o canto de maior qualidade para as grilos-fêmea é aquele cujo intervalo entre os trinados é menor. Ou seja, o macho que canta de forma mais contínua, parando menos tempo para respirar, é mais atrativo para as fêmeas. A pesquisadora, assim, separou as fêmeas jovens em dois ambientes sonoros distintos: um somente com cantos de machos muito atrativos e outro com cantos de machos de qualidade variada. Quando as fêmeas ficaram adultas, foram oferecidos sequencialmente dez machos diferentes para cada uma delas em ambos os grupos.

Constatou-se que, apesar do número médio de machos aceitos ter sido muito similar entre as fêmeas dos diferentes grupos, as fêmeas do grupo de machos atrativos copularam com os machos independentemente de sua atratividade, enquanto as fêmeas do grupo de machos variados copularam preferencialmente com machos atrativos.

Assim, as fêmeas do grupo de machos variados foram mais poliândricas quando, entre os dez machos oferecidos a elas, havia um número alto de machos atrativos. Por outro lado, quando o número de parceiros atrativos era baixo, essas fêmeas foram menos poliândricas.

“A impressão que a gente tem é como se as fêmeas que cresceram ouvindo cantos de qualidade acústica variada aprendessem a distinguir a qualidade do canto dos machos quando se tornassem adultas, enquanto as fêmeas que cresceram ouvindo apenas o canto de qualidade alta não aprendessem a distinguir a qualidade do canto dos machos depois. É como quando a gente aprende alguma coisa nova e começa a ver o mundo de outro jeito, você tem que aprender algumas coisas para começar a perceber outras: assim também acontece com essas grilo-fêmeas”, explica a pesquisadora.

A experiência acústica de uma fêmea nos estágios imaturos, portanto, tem potencial de influenciar seu comportamento sexual quando adulta. E, apesar de ter estudado especificamente o comportamento do grilo australiano, Santana acredita que influência do ambiente que os indivíduos experienciam quando jovens sobre o grau de poliandria pode atuar, também, em fêmeas de outras espécies. “Quando a fêmea consegue uma pista dos parceiros sexuais que irá encontrar quando adulta, é previsto que alguma maneira de modular o seu comportamento ou as suas estratégias ecológicas evolua”, considera.

Poliandria e armamentos masculinos

Se um macho apresenta armamentos ou ornamentos, maior é o número de fêmeas com as quais ele pode conseguir acasalar, seja por vantagens na disputa com outros machos, ou pela atração das fêmeas por traços vistosos – atração esta cuja origem é genética. A evolução dessas características, por sua vez, pode ser influenciada por um processo conhecido como seleção sexual.

“A maneira mais fácil de entender a seleção sexual é comparando-a com a seleção natural. No caso do pavão, por exemplo, sabe-se que apenas os machos apresentam cauda e que, quanto mais vistosa ela for, mais atraente o pavão é para a fêmea. Esse pavão pode conseguir acasalar com mais fêmeas e deixar mais filhotinhos, só que, se ele for confrontado por um predador, é muito mais difícil dele fugir com uma cauda enorme. Ainda assim, a vantagem em termos de deixar filhotes é tão maior em relação à sobrevivência que a cauda exagerada evolui e se mantém presente em pavões-macho. Nesse caso, por exemplo, a seleção sexual age no sentido oposto da seleção natural”, explica Santana.

A fim de explorar as consequências da poliandria para a evolução de características morfológicas nos machos, Erika M. Santana estudou um clado de rãs neotropicais da Sub-família Leptodactylidae. Sabe-se que, mesmo que uma rã-macho com espinhos seja bem sucedida em agarrar uma fêmea, há ainda a possibilidade de outro macho liberar seu esperma sobre a desova do casal, processo conhecido como poliandria furtiva. Nessa parte do estudo, o objetivo geral de Santana era investigar como o risco desse tipo de poliandria pode influenciar a evolução de armamentos nos machos. “A partir da pesquisa, nós confirmamos a hipótese de que o ambiente no qual as espécies de rãs depositam seus ovos influencia a evolução dos armamentos masculinos, e o isolamento das desovas gerado pela reprodução terrestre atenua a seleção sexual”.

Rãs de reprodução aquática com armamentos (em cima) e rãs de reprodução terrestre sem armamentos (embaixo). Imagem: Erika Santana

Percebeu-se também que, apesar dos espinhos e dos braços musculosos estarem fortemente associados à reprodução aquática, onde o risco de poliandria furtiva é maior, a transição para a reprodução terrestre não parece torná-los inúteis a ponto de promover seu total desaparecimento ao longo da evolução. “É provável que mais funções estejam por trás dessas características, o que vai além da hipótese da poliandria e abre margens para novos estudos”, pontua Santana.

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