Com história intimamente ligada ao ciclo econômico do café no Brasil, o Vale do Paraíba, região localizada entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, carrega, em sua arquitetura e paisagem, marcas do sistema escravista desenvolvido no país. Mesmo décadas após o declínio deste capítulo da história político-econômica nacional, visitar cidades da região, como Vassouras, permite visualizar a manutenção da ordem imperial escravista no próprio espaço físico.
“Não consigo visitar Vassouras sem olhar para um casarão e perceber que o piso inferior tem um porão, que era o espaço onde ficavam mantimentos, mas onde dormiam muitos escravos. Ou olhar para a casa-grande sem logo ver a senzala. Olho para todos os espaços daquela cidade e vejo escravidão.” A experiência é do historiador Marcelo Ferraro, que, recentemente, buscou entender como se deu a formação das cidades escravistas na região.
Sua dissertação de mestrado A arquitetura da escravidão nas cidades do café, Vassouras, século 19 defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, tenta enxergar as entrelinhas da produção do espaço físico na cidade fluminense, detentora de grande força política à época do café, com vasto contingente de famílias articuladas politicamente e uma das primeiras a ter seu patrimônio tombado pelo estado.
As relações entre a construção do espaço e a manutenção da ordem senhorial, segundo o pesquisador, são intrínsecas. O preservado centro histórico de Vassouras, construído de acordo com os anseios e objetivos dos barões do café, é prova disso. “Hoje, desaparecem as senzalas e sobrevivem só os casarões magníficos”, afirma.
De acordo com o historiador, que fez oito viagens à região durante o processo de produção de seu mestrado, a paisagem, atualmente, é reflexo de interesses que, no século 19, buscaram influenciar o sistema eleitoral vigente, o poder judiciário e, também, a formação da identidade de classe dos senhores e das pessoas escravizadas.
O trabalho de Ferraro compreende que a formação de uma sociedade, ou de uma cultura, não passa apenas pela relação entre pessoas, mas entre elas e o espaço material e visual que as cercam. No caso de Vassouras e do Vale do Paraíba, a historiografia adentrada pelo pesquisador a denomina de “arquitetura da escravidão”.
“A produção arquitetônica, urbanística, não é a criação de um cenário onde uma sociedade vai desenvolver o seu teatro, mas, sim, parte constitutiva desse enredo — e, inclusive, parte constitutiva das estratégias de poder”, afirma o historiador. “Por vezes, se pensa que a arquitetura é o reflexo de uma dada sociedade. Então, se existe uma elite e uma ‘camada dominada’, a arquitetura reflete isso? Não. A arquitetura produz isso”, completa.
Metodologia
Para a produção da pesquisa, Ferraro usou diferentes conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação enquanto historiador, cientista social e advogado. As disciplinas cursadas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) também deram aporte essencial para o desenvolvimento do mestrado.
O historiador cruzou diferentes fontes documentais: plantas arquitetônicas e urbanísticas; fotografias; inventários, que mostravam a evolução patrimonial das famílias; processos criminais que demonstravam a resistência dos escravos; além de documentos sobre as eleições a nível local, que revelavam a composição da Câmara dos Deputados e a organização política da região.
Mas, a visita a campo foi essencial. “Quando visitei Vassouras, foi a primeira vez que vi e toquei o que era uma cidade escravista. Foi o momento em que entendi que história não é simplesmente uma narrativa do passado, mas, sim, uma realidade visual e material”, compartilha o pesquisador.
Clientelismo
A pesquisa também demonstrou relação direta da construção da paisagem com o sistema político da época. De acordo com o historiador, a arquitetura, além do dinheiro, se tornou estratégia clientelista de algumas famílias para angariar votos nas eleições regionais.
Quem exemplifica bem isso é a família dos Teixeira Leite, tradicional em Vassouras e estudada por Ferraro. Ao passo em que muitas famílias que povoaram a região tinham origem no comércio ou nas atividades de mineração, os Teixeira Leite se valeram de algo que era “fora da curva”: o empréstimo de dinheiro.
A família tornou-se a maior financista da região, financiando desde a população pobre até os grandes proprietários de escravos e terras. A pesquisa de Ferraro na documentação da Câmara demonstrou que, embora não fossem fazendeiros — como seria comum —, os Teixeira Leite foram os candidatos à eleição com mais votos durante um período de aproximadamente quatro décadas.
“Eles usaram de um certo clientelismo financeiro, mas apenas em segundo lugar. Me parece que a construção das principais casas da cidade, de 1830 até 1860, fez deles a grande família que era representada na paisagem de Vassouras”, argumenta Ferraro. “Qualquer pessoa que chegasse e observasse edifícios monumentais, imediatamente perceberia que eram associados a uma única família. A arquitetura e a construção da paisagem foram uma das estratégias clientelistas deles.”
A produção do espaço e da paisagem escravistas em uma cidade do século 19, mostra a pesquisa, demonstra estratégias de resistência dos escravos e dos homens livres, também. No entanto, afirma Ferraro, o que ainda se faz presente aos olhos são as estratégias adotadas pelas camadas dominantes. “A paisagem que se preserva na região até hoje e condiciona uma memória dessa história é a opulência [riqueza] dos senhores, quando se esconde toda a brutalidade que foi a escravidão.”
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