Em tempos de mudança climática, observar como a fauna e flora reagem ao clima é essencial. Foi com isso em mente que Carlos Candia Gallardo, pesquisador do Instituto de Biociências da USP, decidiu explorar a dinâmica populacional de comunidades de borboletas ao longo do tempo em sua tese de doutorado. “Eu quis descrever padrões temporais de biodiversidade tropical, uma vez que grande parte dos trabalhos na América do Sul tem foco apenas na dimensão espacial”, explica Gallardo. “As comunidades animais são dinâmicas. Saber como elas mudam naturalmente é essencial para medir o impacto que elas estão sofrendo devido a atividades humanas”. Sem essa referência, não é possível distinguir entre as mudanças naturais e aquelas decorrentes de fatores externos.
O monitoramento usado como base do estudo continua a ser feito uma vez por mês no câmpus da Cidade Universitária, onde existem 26 espécies do grupo de borboletas selecionado para o estudo, Ithomiini. Nessas ocasiões, Carlos visita algumas áreas verdes do câmpus — o parque Esporte para Todos e o Viveiro das Mudas, ambos na Rua do Matão — acompanhado de sua estagiária, Juliana Pall Irineu de Lira, e equipado com redes para capturar borboletas. Após a captura, eles se sentam, as numeram com o auxílio de uma caneta fina e reúnem os dados em fichas. Frequentemente, eles recapturam borboletas que foram enumeradas anteriormente. Por meio desse monitoramento, eles são capazes de estimar o tamanho das populações, bem como acompanhar a sua taxa de sobrevivência.
No primeiro dos três capítulos da tese, Carlos investiga o comportamento sazonal dessas borboletas a fim de descobrir se ele é apenas reativo — uma resposta à mudança da umidade do clima — ou segue um calendário anual. Essa análise só foi possível devido a uma anomalia que ocorreu durante os anos da pesquisa: a grande seca de São Paulo. “Normalmente, responder isso em campo com o meu método seria impossível, porque existe uma correlação muito grande entre chuva e fotoperíodo”, explica. “A estação que chove tem dias longos, e a estação seca (inverno) tem dias curtos. Geralmente não dá para separar os fatores.” As anomalias climáticas do período, que trouxe invernos úmidos e verões secos, permitiram uma análise separada da influência de cada fator.
Diferenciando as mudanças
No último capítulo, o pesquisador adiciona dados temporais sobre comunidades de pássaros aos dados sobre borboletas para realizar uma análise mais completa da forma que esses grupos se modificam. Alguns desses dados foram coletados por ele, e outros foram acessados por meio de ferramentas de livre acesso. “Ao longo dos anos, uma espécie fica mais comum, outra fica menos. Não por impactos, mas porque a natureza dos organismos é dinâmica. Pode aparecer uma praga, uma friagem, ou o acaso, que chamamos de ‘ruído branco’” conta Carlos. “Então, o intuito foi medir como as comunidades mudariam sem interferência, para termos essa base de comparação para trabalhos práticos que querem medir impacto ambiental”, completa.
Nesse estudo, ele comparou comunidades em circunstâncias diferentes — enquanto algumas aves estavam em reservas florestais, outras tinham como habitat uma área que fora ocupada por um condomínio residencial durante o período da coleta de dados — para diferenciar as reações a interferências humanas do movimento natural daquelas espécies. O segundo tipo é chamado de “mudança não direcional” e ocorre ao acaso, geralmente em progressão menos intensa. Quando as mudanças provêm de ações externas (mudanças direcionais), os elementos mais sensíveis da comunidade são atingidos de forma rápida e radical, levando ao desaparecimento total de algumas espécies.
Ao fim da análise comparativa destes dados, o pesquisador foi capaz de desenvolver uma ferramenta para simular, com base nas informações coletadas em campo, o quanto pode-se esperar de mudança ao acaso. Assim, biólogos que realizarem estudos de impacto podem comparar os dados de mudança coletados àqueles que representam o nível mínimo de mudança, medindo se as alterações fogem à norma e indicam um desequilíbrio de fato. No entanto, Candia-Gallardo ressalta que o mecanismo não é perfeito e ainda está nos estágios iniciais. Ele espera transformar o modelo em um software de fácil utilização em um futuro próximo. “Esse modelo ainda precisa ser jogado na comunidade científica para ver se não tem nenhum furo grave. Se ele passar por esse processo, será feita a divulgação”, explica.
O pesquisador também lembra que essa não é uma ideia inovadora, mas que não existe uma sistematização nesses moldes no Brasil. “Essa pergunta — como mudaria se não tivesse impacto — é frequentemente varrida pra baixo do tapete por aqueles que trabalham na prática. E as pessoas da academia que se preocupam com esse tipo de questão não estão na linha de frente, coletando dados. Eu diria que tem uma lacuna entre as pessoas que pensam na teoria e aquelas que estão na linha de frente coletando dados. Uma ponte é necessária, e nós esperamos que o trabalho aja como tal.”, conclui.
Uma possível semelhança entre espécies
Analisando o comportamento sazonal das borboletas Ithomiini durante um período climático atípico, o pesquisador pôde concluir que a formação de “bolsões” — agrupamentos de borboletas em áreas mais úmidas de um espaço verde durante a estação seca — obedece ao fotoperíodo, não à incidência de chuvas. Isso significa que elas continuaram a formar bolsões mesmo em invernos atipicamente úmidos. As Ithomiini são uma tribo irmã das borboletas Monarca, que ocorrem no hemisfério norte e cujo metabolismo foi extensivamente estudado, revelando que, durante os períodos de agrupamento, elas entram em um estado denominado “diapausa”, no qual ocorrem mudanças fisiológicas e metabólicas.
Carlos partirá para a investigação dos mecanismos internos de regulação das Ithomiini em seu pós doutorado, a fim de descobrir se seu comportamento interno também espelha o das borboletas Monarca. Das 26 espécies do gênero existentes no campus, oito tiveram uma maior quantidade de dados coletados: dentre elas, seis se agrupam em bolsões durante as estações secas, e duas não apresentam esse comportamento. Assim, a pesquisa do pós-doutorado se dará em três níveis comparativos: o primeiro entre a fase de diapausa e a fase de reprodução de uma mesma espécie, o segundo, entre espécies que se agregam e aquelas que não o fazem, e o terceiro, entre agrupamentos da mesma espécie em localizações diferentes, nas quais elas diferem em comportamento. A intenção é descobrir quais genes, hormônios ou tecidos estão associados a essa estratégia de sobrevivência.
O fotoperíodo, utilizado pelas borboletas como referência, não é mais uma pista tão boa quanto fora no passado. “Nos registros históricos, há uma correlação super linda entre chuva e fotoperíodo. Só que nos últimos quatro anos, ela foi comprometida, e os modelos preditivos de clima dizem que essa situação anômala de 2014 vai ser cada vez mais frequente, de modo que a tendência é que nossa estação seca se torne mais comprida.” diz Gallardo “Aparentemente, as borboletas não estão tendo a flexibilidade necessária para lidar com essas mudanças, então seu ciclo pode se desajustar com o ciclo natural em virtude das mudanças climáticas.”
Por meio do estudo do potencial adaptativo de borboletas, ele espera ser possível prever o impacto que as mudanças climáticas na cidade de São Paulo terão nos organismos. “O mais interessante seria, ao final do estudo, poder apontar quais características de uma espécie indicam que ela estará em maior risco durante as mudanças climáticas”, conclui Carlos.
A importância do monitoramento
Ao longo da conversa, Candia-Gallardo reiterou a importância de estudos ao longo prazo do comportamento de espécies. “É uma vergonha que, no Brasil, mesmo em universidades de excelência, não existam estudos de longo prazo da nossa fauna e flora, tal qual estações meteorológicas fazem em relação ao clima.” Sem esse acompanhamento, é impossível estimar o impacto de mudanças climáticas em nossa fauna, que conta com uma diversidade invejável. “Não é à toa que não existem trabalhos de longo prazo: eles não cabem nos cronogramas das agências de financiamento, que tendem a não pagar por programas longos. Um dos entraves para vencermos esse desafio é convencer as agências de fomento da vitalidade desses estudos”, critica Carlos.
Ele comemorou a criação do Observatório de Aves do Instituto Butantan, o primeiro da América Latina, inaugurado há quatro anos. No entanto, ressaltou a importância da cultura amadora de monitoramento para as pesquisas no hemisfério norte: países como os Estados Unidos e a Inglaterra têm enormes bancos de dados alimentados por cidadãos comuns que podem ser utilizados para pesquisas acadêmicas. O incentivo a essa atividade, por meio de aplicativos, por exemplo, seria importante não só para a coleta de dados como também para uma aproximação entre a sociedade, a produção científica e a própria natureza.
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