Prazer em se conhecer

Escondida pela sociedade e ignorada pela ciência durante muito tempo, a sexualidade feminina ainda é uma incógnita — até para as próprias mulheres

(Ilustração: Carolina Unzelte)

Por Carolina Unzelte, Ingrid Luisa, Taís Ilhéu e Victoria Martins

Lendas urbanas falam de uma camisola de mangas compridas, usadas pelas avós de nossas avós, onde só havia um buraco para que o casal pudesse fazer sexo sem que a mulher se despisse. Não era para o prazer, apenas para a procriação, tanto que não era de bom tom que o marido visse sua esposa nua.

Os tabus que cercam o corpo feminino geram desconhecimento da mulher acerca de si própria, o que impede a maioria de viver sua sexualidade plenamente: metade das brasileiras não chega ao orgasmo em relações sexuais, segundo pesquisa de 2016 do Projeto de Sexualidade (Prosex), na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Já entre os homens, são apenas 3,5% que afirmam ter esse problema. Além disso, 67% das três mil entrevistadas de todo o país experimentam dificuldade para se excitar e quase 60% sentem dor no sexo com penetração.

Essa dificuldade em encontrar prazer está relacionada com a questão de gênero, como explica Silmara Conchão, que defendeu a dissertação Masculino e feminino: a primeira vez. A análise de gênero sobre a sexualidade na adolescência, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. “Na nossa história, na nossa cultura, a mulher é a pessoa que está neste outro lugar, de passividade, de espera.”

“Mal sabe a diferença de um clitóris pra um ovário” (Karol Conka)

A sexualidade, de acordo com Julieta Seixa Moizes, autora da tese Educação sexual, corpo e sexualidade na visão dos alunos e professores do ensino fundamental, defendida na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, difere-se do sexo pois se refere a um campo muito mais amplo. São considerados aspectos como auto-estima, identidade de gênero, o prazer e diversos outros como o modo do ser se relacionar consigo e com o outro. Essa concepção ampla de sexualidade ainda permanece nos subterrâneos, já que sexo é um tabu em nossa sociedade.

Quando se trata de sexualidade feminina, é ainda mais comum que as discussões acerca do prazer sejam silenciadas, dando lugar apenas a assuntos ligados à reprodução. Foi pensando nisso que Silmara Conchão optou por dividir a análise de sua pesquisa sob a perspectiva do gênero, já que, de acordo com ela, assim que se descobre as “lentes de gênero”, nunca mais consegue-se abandoná-las. “Depois que você adquire essa visão de como estão organizados socialmente homens e mulheres, você vê essa assimetria em todos os setores da sociedade,” comenta.

Quando se trata de pensar em promover uma vida sexual mais sadia e com menos preconceitos, o ensino voltado à sexualidade nas escolas é parte da discussão pública e, cada vez mais, ganha espaço. Contudo, professores pouco capacitados, grade curricular inadequada, os próprios tabus acerca do tema e o conservadorismo ainda são entraves. Para Conchão, a discussão sobre sexualidade é um problema ainda maior no campo da adolescência: segundo ela, “assim como os idosos, os adolescentes também são considerados assexuados pela nossa sociedade,” e, assim, “foi um grande desafio jogar luz nas práticas sexuais e afetivas”. Vencida a barreira de falar abertamente sobre o assunto, uma outra se ergue: o fato de essa abordagem ser geralmente rasa ou, ainda, incorreta.

(Ilustração: Carolina Unzelte)

Muitas vezes os professores pensam conversar sobre sexualidade, quando na verdade falam apenas de sexo. “Esses professores fazem uma abordagem muito biológica e não entram nas dúvidas dos adolescentes, que não têm espaço”, afirma Moizes. A educação sexual no ambiente escolar privilegia a anatomia do sistema reprodutor e as DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis). Porém, conforme defende Conchão, ainda que essas informações sejam importantes, “não precisamos causar terrorismo, temos que virar essa página e falar mais de prazer”. O que não significa que haja incentivo à sexualide precoce: “A partir do momento do nascimento, o prazer e as necessidades da descoberta nascem juntos”, afirma a pesquisadora. “Falar disso é tratar e respeitar o desenvolvimento natural das pessoas.”

Nesse sentido, a pesquisadora ressalta a importância de fomentar o diálogo aberto. “É preciso tirar a sexualidade feminina do lugar do sujo, do proibido, do promíscuo, e colocar no local dos direitos, do natural, do desejo biológico”. Esse tipo de abordagem proporciona uma melhor relação com um processo da natureza humana e com a produção social que vem junto com ela.

Além disso, o julgamento negativo da sociedade em relação às mulheres que são desenvoltas sexualmente faz com que muitas acabem por se retrair no campo sexual. “No mundo ocidental, a circuncisão feminina é moral”, afirma Silmara. “O clitóris é negado e matamos o orgasmo”. O clitóris é o único órgão humano dedicado exclusivamente ao prazer, com mais de 8 mil terminações nervosas na parte externa e, mesmo assim, só ganhou um modelo 3D em plástico no ano passado: apesar de aparecer em textos médicos desde a Grécia Antiga, Freud o classificou como “pênis inacabado” e, aos poucos, ele caiu no esquecimento da comunidade científica.

“Quantas mulheres passaram uma vida inteira achando que tiveram orgasmo e fingindo que tiveram orgasmo. Elas enganaram os homens que tiveram, mas, principalmente, se engaram”, afirma Conchão. Assim, há necessidade, segundo a pesquisadora, de que as mulheres descubram seu próprio corpo para encontrar seus caminhos até o clímax. “Vamos falar de prazer, de namoro, de gozo, de orgasmo, de tesão”.

Esse silêncio causa outros problemas além da frustração feminina, e esbarra em temas como aborto, influência religiosa, relações familiares e até serviços de saúde. O conservadorismo presente nesses âmbitos é uma das maiores dificuldades para se tratar o assunto de maneira saudável.

Sobre religião, Silmara destaca que muitos preceitos ainda geram sentimentos de culpa, como acontece, por exemplo, quando os jovens sentem que transar é errado e promíscuo. Entretanto, a pesquisadora afirma ter visto avanços nessa esfera, já que, segundo ela, “os jovens estão amadurecendo e, mesmo seguindo uma crença, eles percebem que os próprios líderes religiosos não fazem tudo que pregam e que aquilo está muito desconexo da realidade”.

Conchão destaca, ainda, outra transformação: a questão da virgindade. Antes uma obrigatoriedade imposta às mulheres até a época do casamento, hoje é vista com mais liberdade e encarada de maneira mais natural, inclusive por meninos. “Eles não veem mais motivos para o dever da menina ser virgem, aliás, acham que transar com uma garota virgem é muita responsabilidade”.

Já em relação ao âmbito familiar, Conchão notou a presença significativa de misoginia dentro das próprias casas. De acordo com a pesquisadora, “as meninas contam que o tratamento aos irmãos é muito diferente do recebido por elas”. Outro problema identificado foi a culpabilização da figura feminina em todo e qualquer problema envolvendo situações ligadas ao sexo, como flagrantes íntimos ou, até mesmo, gravidez indesejada. “Com isso se cria um rótulo, de que ela não presta. É condenada socialmente e moralmente”, afirma Silmara. “As meninas grávidas sofrem muito, desde a discriminação na escola até o não reconhecimento paterno, e o responsável ainda é absolvido”.

Uma outra questão levantada por Conchão é o aborto, tema que pretende aprofundar em seu futuro doutorado, também com o enfoque de gênero. De acordo com ela, existe um tratamento diferente aos dois sexos, já que “nesse país, há uma hipocrisia em relação à criminalização: a mulher é tremendamente prejudicada, mas os meninos não têm medo, porque não são condenados legalmente nem moralmente”.

A problemática da interrupção da gravidez também relaciona-se à questão de saúde pública, outro fator no qual o tratamento da sexualidade feminina acaba por esbarrar. “É assustadora a quantidade de garotas que entram em situação de aborto de risco,” afirma. De fato, de acordo com estudo do Instituto do Coração (Incor/HCFMUSP), realizado em 2010, a curetagem pós-aborto foi o procedimento cirúrgico mais realizado no Sistema Único de Saúde, entre 1995 e 2007 e, conforme aponta pesquisa do Instituto Guttmacher, centro americano de levantamentos acerca de saúde reprodutiva, de 2015, no Brasil 7 milhões de mulheres são internadas anualmente em decorrência de complicações pós-aborto.

“No anúncio da revista ou na obra de arte, a libido está em toda parte” (Ana Carolina)

O dilema entre “ser mãe e ser sexual” foi um ponto de virada na trajetória de Stephanie Teramae. Ainda jovem, ela engravidou e percebeu como gerar um filho e adentrar em um espaço esperado para a mulher pela sociedade colocou-a em uma posição dicotômica entre ser uma boa mãe e poder vivenciar sua sexualidade sem preconceitos, cisão que, segundo a psicanalista Elizabeth Sanada, “traz muitos conflitos”, já que é definida pelas representações sociais da mulher, que não condizem à ideia de uma figura materna que também é um ser sexual. “Se não há uma visão santificada, tem a visão da mulher prostituta,” afirma a pesquisadora.

Assim, pensando em falar sobre aquilo que lhe incomodava, Teramae encontrou no YouTube uma porta para discutir algo que sempre lhe interessou e levar essas informações para muitas outras mulheres: surgiu, então, o Canal Vaginal, que desde 2010 aparece como um lugar em que a sexualidade feminina pode ser abordada e comentada sem tabus e hoje conta, ainda, com mais uma integrante. “Falo de mim, mas queria que as mulheres todas pudessem viver livres desse preconceito. Porque a nossa sexualidade não interfere, necessariamente, na nossa maternidade,” pontua. Criar o canal foi para ela, também, uma forma de romper com a vergonha, consequência do machismo, e sentir-se realizada por isso.

Para além das discussões sobre a maternidade, o Canal Vaginal trouxe à tona temáticas como virgindade, masturbação feminina e orgasmos, entre outros tópicos. Segundo Teramae, o canal recebe feedbacks positivos e motivadores. Porém, mesmo a internet sendo um lugar mais aberto a debates acerca da sexualidade, ainda existe uma dificuldade em abordar o assunto, já que “quase tudo ainda é um tabu, desde usar a palavra boceta para se referir à genitália até a questão do aborto”. “A liberdade sexual das mulheres, em uma dimensão social, ainda é uma falácia,” comenta a youtuber, revelando que até mesmo no grupo do canal no Facebook, restrito à mulheres, muitas ainda ficam um pouco tímidas em comentar e partilhar suas experiências. Ainda assim, ela acredita que é preciso continuar a incitar esse debate para que as pessoas sintam-se a vontade para refletir e discutir o tema. “Poderíamos evitar muitas situações de abuso se conversássemos e ajudássemos a dar nome às coisas,” afirma. “Muitas mulheres vivem em relacionamentos tóxicos e não sabem disso, e as filhas delas talvez sigam esses exemplos”.

Teramae é, porém, apenas mais um exemplo dentro do rol de meninas e meninos que encontraram no YouTube uma forma de expressarem assuntos que não estavam sendo tratados dentro das mídias tradicionais, como é o caso, por exemplo, da youtuber JoutJout, que ganhou fama após videos em que falava sobre relacionamentos abusivos, feminismo e sexualidade, dentre outros. Essa situação está relacionada ao deslocamento das dinâmicas comunicacionais, que intensificou-se nos últimos anos, com o desenvolvimento da internet e dos novos meios de comunicação: se, antigamente, era a televisão e os jornais que pautavam as conversas na sociedade, hoje, pelo contrário, são as pessoas, especialmente grupos minoritários, que determinam as temáticas a serem tratadas posteriormente pelos grandes veículos. A mudança consolidou uma possibilidade para que pessoas que antes não tinham a oportunidade de falar ganhassem voz.

Dentro desse novo cenário, despontam, para além do YouTube, outros veículos, como revistas online e blogs, que abordam de maneira distinta a questão da sexualidade feminina, encarando-a em uma perspectiva próxima de demandas feministas e de outros movimentos sociais. É o caso, por exemplo, da AzMina, que adaptou um jornalismo feminino na maioria das vezes voltado à colocar a mulher em uma posição de submissão sexual ao homem e colocou-a em protagonismo. Em 2015, por exemplo, a revista lançou a série de reportagens Molhadinha, que tratou da sexualidade feminina sem amarras em nove textos sobre assuntos que iam desde sexo anal à construção de gênero e de sexo biológico, levando a muitas mulheres uma informação a qual elas não tinham tanto acesso em outros tempos.

Além disso, é perceptível, ainda, a mudança de discurso que muitos veículos tradicionais vêm empregando em suas produções, como acontece em revistas para adolescentes, que por muito tempo divulgaram ideais de feminilidade relacionados à meiguice e padrões de sexualidade muito restritos as temáticas que envolvem gravidez adolescente e DSTs, mas que, hoje, trazem assuntos mais amplos. A Capricho, por exemplo, abordou, no mês de junho, temas como virgindade, sexo oral e comunidade LGBTQ+, entre outros.

“Trabalhar com sexualidade pode mudar o mundo de maneira poderosa,” afirma Teramae. Nos novos tempos, marcados por uma divulgação de lutas pelo bem-estar da mulher e sua liberação do machismo, a sexualidade feminina ganhou força enquanto tema e têm buscado cada vez mais seus espaços, chegando a lugares antes muito mais conservadores, seja por meio de vídeos produzidos por amigas em casa, no jornalismo feminino independente ou ainda estampando as páginas de grandes revistas. Ainda que, de acordo com Teramae, haja uma espécie de hostilidade nas novas plataformas digitais, o ambiente é, principalmente, uma forma de escape e um lugar em que “as pessoas possam se aproximar mais de sua sexualidade e, consequentemente, de seu autoconhecimento”. “É um trabalho de formiguinha mesmo, e tudo bem,” revela. “É importante seduzir as pessoas para essa discussão e fazê-las se sentirem à vontade para refletir e questionar. Fomos muito reprimidas, em maior ou menor grau e agora, precisamos avançar”.

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