Olimpíadas potencializaram reordenação urbana no Rio

Foto: Instituto de Arquitetos Brasileiros

Originalmente uma vila de pescadores, a Vila Autódromo começou a se formar em 1960. Já no início da década seguinte, em função da construção do Autódromo Nelson Piquet e de um conjunto residencial da Aeronáutica Brasileira, a comunidade passou pela sua primeira modificação espacial. Na época, a população residente da comunidade, localizada na região limítrofe entre os bairros da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, foi deslocada para uma faixa de terra entre o muro do autódromo e as margens da Lagoa de Jacarepaguá.

Em 2009, o Rio de Janeiro foi escolhido pelo Comitê Olímpico Internacional para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. O local do novo Parque Olímpico, o principal complexo esportivo construído para o evento, foi definido. Seria no terreno do Autódromo Nelson Piquet, que já antes havia sido modificado para a realização do Jogos Pan-Americano de 2007. Desde seu início, a Vila Autódromo sofreu ao longo de sua história várias tentativas de remoção, mas com o anúncio da construção do complexo ao lado da comunidade, a pressão para que ela fosse retirada de lá se tornou ainda mais forte.

Com o objetivo de identificar os sujeitos sociais e interesses envolvidos na prenunciada remoção da comunidade, Carine Previatti realizou um mestrado pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Intitulada  Segregação socioespacial na realização dos Jogos Olímpicos Rio 2016 na região da Barra da Tijuca – RJ: comunidade Vila Autódromo, a dissertação, baseada em uma metodologia teórico-documental, destrincha o conflito entre moradores e poder público na comunidade, evidenciando as contradições na produção do espaço na cidade do Rio de Janeiro, e, principalmente, a influência de megaeventos, como os Jogos Olímpicos de 2016, nesse processo.

Plano para o Parque Olímpico, com Vila Autódromo em destaque à esquerda. Imagem: Carine Previatti.

A produção das cidades na sociedade capitalista se dá de forma fragmentada. “Existe um aporte de recursos estatais para determinadas áreas da cidade que interessam para a expansão do capital e outras ficam esperando uma valorização de mercado”, explica Previatti. Com a Vila Autódromo não foi diferente. “Os moradores reivindicavam urbanização – no sentido de asfaltar a rua, colocar luz elétrica, ter saneamento básico – há 40 anos, e o estado sempre se negou a fazer isso. Quando você atravessava a rua, do outro lado, havia condomínios de luxo com todos esses serviços”.

“O Rio de Janeiro sempre usou planos de ordenamento urbano para fazer alterações pontuais em locais que interessavam”, diz ela. No começo, os planos sanitaristas e higienistas removeram a maior parte da população pobre da Zona Sul e a colocou nas periferias. Também na ditadura civil-militar, outro tanto foi removido da região mais central da cidade. A prática se repete até os dias atuais. “Houve uma produção do espaço desigual. A remoção de populações pobres de áreas que interessam para a especulação imobiliária e realocação para lugares cada vez mais distantes”.

Na própria Vila Autódromo, conta Previatti, havia moradores realocados por causa de outras remoções. O presidente da Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo, entidade que sempre cumpriu papel importante no processo de resistência da comunidade, passou a morar no lugar por causa de uma terceira remoção que sofreu junto à sua família.

Desde 1993, havia um processo jurídico para a remoção da comunidade, pois parte dela estava localizada na chamada Faixa Marginal de Proteção (FMP) da Lagoa de Jacarepaguá, um espaço de 30 metros a partir da margem da lagoa que deve ser preservado. Quando os primeiros moradores se instalaram no lugar, essa distância era de 23 metros, o que era respeitado, mas, com a mudança na legislação, eles se tornaram irregulares. Em 2005, a Vila foi declarada uma Zona Especial de Interesse Social, destinada à construção de moradias populares. “Desde 1994, havia famílias que já estavam recebendo titulação de uso para moradia pelo Estado, porque a área que eles habitavam era do governo do Rio de Janeiro”, diz Previatti.

“Quando o Rio de Janeiro sediou os Jogos Pan-Americanos em 2007, eles tiveram uma ameaça de remoção mais forte do poder público, porque estavam muito próximos à área em que ocorreram os Jogos”, afirma. A resistência da comunidade, no entanto, fez com que nenhuma família fosse removida durante o evento. “Já havia tentativas de remoção, mas eles tinham instrumentos jurídicos que mantinham a luta forte e a favor dos moradores”. A história se repetiu a partir do anúncio de que Rio sediaria os Jogos Olímpicos, mas dessa vez com muito mais intensidade.

Em 2013, a primeira parte do processo de remoção dos moradores da Vila Autódromo foi feita com a suspensão de uma liminar que permitia a ocupação da FMP da Lagoa de Jacarepaguá pelos moradores da comunidade. Com a perda dessa ação, as famílias em situações econômicas mais vulneráveis, cujas moradias eram as mais precárias, passaram a assinar acordos individuais com a prefeitura para mudarem para um conjunto habitacional construído através do Programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal, chamado Parque Carioca. “Foi uma conquista da comunidade, pois eles conseguiram que a prefeitura construísse um prédio de habitação para eles a menos de um quilômetro de distância de onde era a Vila Autódromo”, avalia Previatti.

Destroços de casas demolidas na Vila Autódromo. Imagens: Carine Previatti.

Os outros moradores continuaram resistindo, principalmente aqueles situados na margem da lagoa. O poder público, então, passou a se utilizar de diversas formas para tirar o resto dos moradores de lá. Segundo Previatti, vários agentes da prefeitura se infiltraram na comunidade e começaram a ameaçar os moradores, afirmando que os que resistissem iriam ficar sem nada no final. Os boatos que esses agentes espalhavam entre os moradores passaram a gerar atrito entre eles, desestabilizando a comunidade. O fornecimento de água e luz chegou a ser interrompido por dias na comunidade. Algumas famílias começaram a ceder, se iniciando um processo de indenização aos que optavam por sair.

A partir das visitas à Vila Autódromo e de entrevistas com moradores, Previatti também pôde avaliar os impactos emocionais que todo o processo de remoção teve nas famílias. “Teve famílias que simplesmente se desmancharam, vários casamentos que terminaram”, conta Previatti. Gerações de famílias que moravam no mesmo terreno entravam em conflito sobre a permanência ou não na comunidade, assim como casais. “Foi um processo muito violento”, afirma. Os destroços lembravam um cenário de guerra. “Não tinha milícia nem tráfico, era um lugar muito pacífico.”

Como o terreno em que estava localizada a comunidade é de poder público, não havia nenhuma norma que estabelecesse o valor que deveria ser pago para as famílias. O critério que os agentes utilizaram para negociar valores da indenização foi a qualidade das casas. As famílias com moradias mais bem construídas recebiam mais do que aquelas com casas em condições piores. “Era um processo totalmente arbitrário”, lembra Previatti. Famílias de casas vizinhas eram pagas valores muito diferentes, o que também gerava conflitos entre eles. No final do processo, havia famílias recebendo quantias de 2 milhões de reais.

De acordo com Previatti, “desde quando a Prefeitura removeu essas primeiras famílias para o Minha Casa, Minha Vida, o argumento era de que só precisavam tirar as famílias da Faixa Marginal. Do  resto, todo mundo que quisesse ficar poderia ficar”.  Quando questionavam quais seriam os planos para o local da comunidade, a Prefeitura nunca dava uma resposta assertiva. “Primeiro a Prefeitura falou que era por causa do Parque Olímpico, mas ele não interferia na área da Vila Autódromo. Depois, era a ampliação das avenidas ao redor. Depois, era um pontilhão que ia passar do BRT. Não tinha uma coesão, nunca teve”.

Hoje, a área que foi desapropriada está vazia, não foi utilizada para nada nos Jogos Olímpicos e nem depois. Há estimativas de que das 557 famílias que habitavam a comunidade Vila Autódromo, isto é, cerca de 3 mil pessoas, 349 optaram por se muda para o Parque Carioca e 183 por indenizações. No final, somente 25 permaneceram no local. Para essas, a Prefeitura construiu, após atrasos e a alguns dias do início dos Jogos, 20 casas, na única rua que sobrou da Vila.

Em sua dissertação, Previatti avalia que os Jogos Olímpicos “potencializaram vários projetos de ordenação urbana que estavam engavetados, presentes nos planos estratégicos de 1996”. Segundo ela, “a aliança dos três poderes – o estadual, municipal e federal – tornou possível que todas essas obras fossem concretizadas”. Por outro lado, ela também pontua, “a mobilização dos moradores trouxe ganhos para eles, mesmo que não tenha sido da forma como eles gostariam”.

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