Pesquisa da USP estuda o potencial de desenvolvimento do preconceito em crianças pequenas

Bonecos confeccionados para a pesquisa com os quais as crianças brincavam (Fotos: Fernanda Cabral/ Montagem: Iolanda Paz)

Ao buscar compreender quando o preconceito tem origem – e admitindo ser essa uma pergunta complexa –, Fernanda Araujo Cabral, em sua tese de doutorado Investigação do potencial de desenvolvimento do preconceito em crianças pequenas, fez uma pesquisa com crianças de três a quatro anos de idade em uma escola da rede privada do município de São Paulo. Por meio do estudo, concluiu que essa faixa etária é a idade limite para se aplicar intervenções com o objetivo de minimizar os efeitos do preconceito.

Segundo Fernanda, a escolha da faixa etária se deu por essa ser uma etapa do desenvolvimento na qual a criança ainda não internalizou as regras sociais, verbalizando seus pensamentos e não buscando esconder a percepção que tem do diferente. Pesquisas anteriores trabalharam com crianças um pouco mais velhas e constataram que o preconceito não era manifestado porque, tendo sido repreendidas por adultos anteriormente, elas tinham aprendido a não explicitá-lo. Além disso, Fernanda queria uma idade sobre a qual houvesse poucos estudos e, por isso, eligiu a primeira infância – época em que a psicanálise freudiana delineia como o início da fase de formação do supereu, ou seja, como o período em que a criança começa a desenvolver autonomia.

O intuito da pesquisa foi compreender, a partir de situações cotidianas, como crianças de pouca idade desenvolvem o preconceito. Fernanda baseou-se no referencial da Teoria Crítica e em autores como Theodor Adorno – que, no pós-segunda guerra, tentou entender por que pessoas consideradas “de bem” aderiram ao fascismo. Junto a outros pesquisadores e por meio de um estudo extenso chamado Personalidade Autoritária, ele criou uma escala denominada escala F, que media o potencial de adesão ao fascismo a partir de perguntas feitas a adultos.

Fernanda adaptou essa escala para o mundo infantil, optando por trabalhar com o lúdico enquanto fazia as perguntas. Como parte do método, confeccionou bonecos variados: figuras masculinas e femininas; brancas e negras; de duas alturas diferentes; e que utilizavam ou não muletas. O recorte foi estudar o racismo e o preconceito contra pessoas com deficiência. Por causa da pouca idade das crianças, era preciso encontrar elementos graficamente representáveis – no caso, a cor da pele e a ausência ou não de um membro. Mas Fernanda conta que questões de gênero apareceram durante o estudo, além de algumas crianças terem formado, espontaneamente, famílias com duas mães ou dois pais durante as brincadeiras.

A pesquisa foi dividida em duas partes: um momento de observação no qual as crianças interagiam livremente com os bonecos; e uma segunda etapa em que Fernanda brincava junto a elas propondo nove situações-problema para avaliar, de maneira lúdica, aspectos investigados pela escala F. “Fui tentando entender quais papéis eram atribuídos aos bonecos”, diz. Na hora da brincadeira, a pesquisadora apenas anotava as respostas e reações das crianças, interpretando-as posteriormente e organizando as possibilidades de respostas por meio de pontuações. Quanto maior fosse a pontuação, maior era o potencial de adesão ao preconceito.

Na primeira situação-problema, por exemplo, Fernanda pedia que escolhessem 2 bonecos para cuidar das crianças, 2 para serem os filhos, 1 para representar um ajudante da casa e outro para ser filho do último. Se essa família fosse toda branca e os cuidadores fossem exclusivamente negros, sem a presença de pelo menos um personagem com deficiência, a pontuação de adesão ao preconceito era máxima. Agora, se a família e os cuidadores fossem tanto brancos como negros – incluindo ou não a presença de pelo menos um personagem com deficiência –, nesse caso, a pontuação era mínima. Havia, também, as respostas e pontuações intermediárias.

“Não são essas perguntas que vão definir se a criança é ou não preconceituosa, mas podemos dizer que existem tipos de escolhas que têm mais tendência de adesão ao preconceito”, Fernanda explica. “Pode ser que a criança só esteja exemplificando o que acontece na casa dela”. A pesquisadora, entretanto, conta ter ficado surpresa quando, ao final do estudo, constatou a existência de uma baixa pontuação geral – o que contrariou sua hipótese inicial. “Na situação-problema da família, a maioria delas pegou bonecos aleatórios”, diz. “Foi encantador ver isso nas crianças.”

Fernanda faz, porém, uma ponderação: “Se pudesse apontar uma falha na pesquisa, seria de que ela precisava ter sido mais extensa, porque acabei estudando só uma escola”.  De acordo com ela, a instituição em específico, por mais que fosse de classe média e praticamente sem crianças negras matriculadas – o que era um dos motivos para sua suposição de que a pontuação seria alta –, apresentava um ambiente muito favorável a não disseminação do preconceito. A pesquisadora conta que os brinquedos da escola eram compostos por bonecos brancos, negros, índios e orientais. Suas paredes também eram pintadas com pessoas de todas as cores e que, por exemplo, utilizavam cadeiras de rodas. Para ela, esse ambiente aliado à pouca idade das crianças foram os fatores que favoreceram a baixa pontuação.

Mediação dos adultos

De acordo com Fernanda, muitas vezes, os adultos não sabem fazer uma mediação apropriada ao falar sobre preconceito com as crianças. A falta de naturalidade perante as perguntas delas – as quais surgem da curiosidade infantil – e a postura do “Não fale desse jeito!” fazem com que as crianças enxerguem tensões e problemáticas ao abordarem questões que se relacionam com os preconceitos. “Quando o adulto consegue fazer a mediação de uma forma mais natural, e é importante que a faça, ele favorece que essa criança cresça sem a formação do preconceito”, explica.

Um dos motivos para a baixa pontuação na instituição estudada foi, justamente, porque ela fazia a mediação apresentando a diversidade de uma forma bastante natural. Como a escola é o grande agente socializador das crianças, ela tem papel fundamental nessa intervenção – por mais que nem sempre ela seja feita de maneira adequada. Quando crianças com deficiências são incluídas em salas regulares, por exemplo, ainda hoje existe o discurso de “Nós, classe, vamos ter que ajudar o novo coleguinha com deficiência”, que contribui para a manutenção do preconceito.

Fernanda diz que é também muito comum, nas escolas mais caras, haver poucos negros e pessoas com deficiência, não existindo um ambiente de diversidade. “A questão é maior do que a escolar: a escola só reproduz o que está na sociedade”, diz. Então, é importante que a instituição introduza a diversidade seja nos desenhos, seja no mobiliário, seja nos textos trabalhados em classe, dentre outras formas.

Segundo a Teoria Crítica, o preconceito já está enraizado em nossa sociedade e, por esse motivo, deve ser criticado. Uma criança branca de classe média alta, como exemplifica Fernanda, ao constatar a presença de negros em papéis socioeconômicos subalternos, vai percebê-los como mais pobres. A mediação tem que ser feita pelo adulto para apontar à criança que hoje isso ocorre, mas que não deveria ser assim, contando e problematizando os processos históricos de uma forma que ela consiga compreendê-los – por meio de desenhos ou com uma linguagem mais simples.

“Pensamos que, se uma criança simplesmente conviver com crianças negras ou com deficiência, por exemplo, isso já seria suficiente para crescer livre do preconceito”, diz. “Mas, na verdade, não: é preciso a mediação.” Segundo Fernanda, a idade dos três a quatro anos é quando as crianças conseguem entender melhor o que lhes está sendo dito, sendo essa a idade limite para se trabalhar objetivando diminuir os efeitos do preconceito. Entretanto, ela considera que o ideal é começar antes, até mesmos com bebês, atentando-se para não incorporar, nos discursos transmitidos a eles, preconceitos que estão na sociedade e que poderiam acabar sendo naturalizados durante a formação da criança.

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