Psicologia social é utilizada para analisar o futebol profissional no Brasil

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Por meio de um estudo inédito, que deu origem à tese de doutorado O futebol profissional e o processo de formação de grupo, de 2017, Rafael Castellani pesquisou o futebol profissional no Brasil. Ele teve como referencial teórico a psicologia social e fundamentou-se, principalmente, no autor Pichon-Rivière. Para entender o processo de formação grupal, Castellani foi a campo por seis meses, conseguindo acesso a três clubes: Associação Atlética Ponte Preta, Clube Atlético Bragantino e Guarani Futebol Clube – respectivamente das séries A, B e C do Campeonato Brasileiro. Nas equipes, o pesquisador entrevistou, ao todo, 25 jogadores, 12 integrantes de comissão técnica e 6 dirigentes, estabelecendo críticas relevantes a uma instituição que diz ser conservadora, excludente e de controle: o futebol.

Uma das constatações de Castellani foi quanto à cristalização de papéis dentro dos grupos futebolísticos. Em um ambiente de enorme pressão por vitórias e bom desempenho – vinda tanto do clube, quanto da torcida, da mídia e da família –, os atletas têm uma dificuldade muito grande em aceitar papéis que não são considerados como de protagonistas. Segundo o pesquisador, os jogadores competem entre si para serem os titulares e os goleadores, já que o destaque pode trazer patrocínio, apreço da torcida, melhores salários e um bom contrato. Entretanto, Castellani explica que uma rotatividade de papéis seria benéfica para o funcionamento do grupo, gerando maior aprendizagem e ampliando a produtividade da equipe.

“O ideal é que eles circulem por papéis distintos, porque, somente a partir dessa vivência, eles vão aprender a respeitar e a desempenhar todos os papéis dentro do grupo”, afirma. O que se tem feito atualmente na seleção brasileira, por exemplo, é o rodízio do papel de capitão, que varia conforme os jogos. Além disso, Castellani lembra que, na Europa, não é recorrente que haja times com 11 titulares bem definidos e seus respectivos reservas: pelo contrário, diferentes jogadores são mobilizados para as partidas. “Através de conversas e dinâmicas, é possível fazê-los entender que isso é natural”, diz. “Um dia, eles estarão em campo; no outro, estarão fora torcendo por um colega do grupo.”

A lógica do futebol brasileiro é bastante imediatista e, normalmente, não se concede tempo para que os atletas vivenciem diferentes papéis. Castellani explica que, se um jogador obtém um bom desempenho como titular, a tendência é ele permanecer nessa posição. Por outro lado, se não executa bem a função, chama-se outro. Essa busca incessante por rápidos resultados leva à ocorrência de mudanças constantes no futebol, tanto de troca de atletas – que a cada momento estão em um clube – como da comissão técnica.

Pichon-Rivière fala que todo processo de mudança faz emergir ansiedades básicas que estão relacionadas à aprendizagem: o medo da perda e o medo do ataque. Então, diante das modificações que se apresentam, os jogadores têm receio de perder aquilo que já conquistaram. Não vão querer a troca de um treinador, por exemplo, se estiverem jogando bem, ganhando e desempenhando um papel que satisfaça suas necessidades. O medo do ataque está relacionado justamente a não desejarem que suas seguranças sejam abaladas e ao receio de não conseguirem enfrentar o desconhecido – como um novo esquema tático ou método de treino.

De acordo com Castellani, quando os clubes propõem uma troca na comissão técnica, eles utilizam o argumento de que a medida gerará motivação na equipe, a qual treinaria melhor. Mas, em seu estudo, o pesquisador constatou que a ansiedade é o estado emocional que emerge em maior intensidade, mesmo que alguns jogadores – como os que não estão contentes com o papel desempenhado – passem por um aumento de motivação. “Um atleta que vem desempenhando uma posição importante dentro do grupo pode até ser que treine melhor, mas não porque está motivado e, sim, porque tem medo de perder essa posição que vinha ocupando”, explica.

A troca de treinadores acontece dentro de um período muito curto quando um resultado não é alcançado. E, logo após a nova contratação, já se espera uma vitória. O técnico recém chegado, assim como os jogadores, está repleto de ansiedades derivadas do processo de mudança, além de não saber o que vai encontrar no time. Por isso, Castellani pontua que é necessário conceder mais tempo para que a comissão técnica possa desenvolver seu trabalho com o grupo.

Essa mesma urgência por resultados é observada nas ocasiões de chegada de jogadores ao clube. “Às vezes, não há a paciência para que o atleta retribua do ponto de vista esportivo aquilo que se esperava dele no momento da contratação”, afirma o pesquisador. Segundo Castellani, o processo de “adaptação” – ou ambientação, como prefere utilizar – dos jogadores é mais amplo e complexo do que os times imaginam. Não é apenas entender como o clube funciona, ou treinar bem, ou ter um amigo. Há uma série de estágios dentro do processo de desenvolvimento grupal que precisam ser contemplados, como o estabelecimento de uma comunicação efetiva com o grupo e o próprio sentimento de pertença, por exemplo.

O estudo constatou que não há uma preocupação em receber o atleta que chega e inseri-lo dentro do grupo que já está formado. Castellani propõe que o processo de ambientação seja pensado com mais atenção e cuidado pelos clubes. Além disso, explica que os conceitos de adaptação ativa e passiva de Pichon-Rivière foram utilizados em sua pesquisa, adaptando-os ao futebol. Um jogador está adaptado ativamente, por exemplo, não quando ele aceita de maneira indiscriminada as regras postas, mas quando ele tem capacidade crítica para propor mudanças – tanto em si mesmo como no grupo – relacionadas às tarefas desempenhadas.

Entretanto, Castellani ressalta que, para aqueles que estão mais acima na hierarquia de poder do futebol – como dirigentes de confederações, federações e clubes, e também líderes da comissão técnica –, quanto menos os atletas questionarem e criticarem a estrutura vigente, melhor, porque assim se garante que as condições que lhes são favoráveis permaneçam.

Jogados para escanteio

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Na maior parte das vezes, os jogadores não têm espaço para que suas necessidades possam ser ouvidas e atendidas. “Quando o clube tem como prioridade somente o resultado final, ele passa por cima do que for preciso”, diz Castellani. De acordo com o pesquisador, esse tipo de postura pode até ser efetiva em um determinado momento – trazendo vitórias e alto rendimento –, mas, do ponto de vista psicológico, gera consequências negativas para os atletas e os funcionários como um todo.

“Em tudo o que é planejado dentro do clube, aquilo que o atleta pensa, sente, quer e precisa não é levado muito em consideração”, afirma. Um exemplo citado na tese é a concentração esportiva – quando, antes de partidas, os jogadores ficam “confinados” em hotéis ou alojamentos. Para Castellani, a forma como ela está estruturada é equivocada, pois se constitui, quase que exclusivamente, em um espaço de reclusão. Por meio dela, o clube garante que os atletas estarão se preservando para o jogo: alimentando-se de maneira saudável, dormindo melhor e longe de situações que possam distraí-los, como festas. Porém, no estudo, alguns jogadores relataram a existência de um grande sentimento de aprisionamento. Além disso, muitos explicitaram a dificuldade de ficar longe da família e de abrir mão do convívio com a mesma.

Entretanto, Castellani diz que, curiosamente e ao contrário do que tinha como hipótese, a maioria dos atletas entrevistados afirmou que acha importante e necessária a existência da concentração esportiva.  “Romper com essa prática de uma hora para outra pode significar uma ansiedade muito grande”, diz. Por esse motivo, o pesquisador propõe uma ressignificação da concentração, ainda que questione se ela deva realmente existir. Uma proposta levantada é torná-la mais flexível: ela não seria mais necessária antes de todos os jogos e, também, o atleta poderia ter a escolha entre permanecer ou não no hotel.

Além disso, Castellani considera ser importante desenvolver, na concentração esportiva, atividades lúdicas e dinâmicas que possam acelerar o processo de formação de grupo, como assistir a um filme reunidos. O pesquisador conta que, muitas vezes, os jogadores nem veem uns aos outros: cada um fica em seu próprio quarto. Alguns clubes ainda pedem que eles almocem e jantem juntos, mas não são todos. A falta de comunicação, e também o fato de os atletas mudarem constantemente de clubes, tornam os vínculos no futebol bastante frágeis e transitórios – o que não favorece o desenvolvimento dos processos grupais.

Castellani explica que a comunicação é também muito importante para a aprendizagem, para o trabalho operativo do grupo e para o desempenho dos atletas em campo, por mais que não seja o único fator que interfira no último. “Aqueles grupos que se comunicam melhor, tendem a desempenhar melhor a tarefa grupal – que, no caso do futebol, é a partida”, diz. Durante a pesquisa, um entrevistado contou a ele que já havia jogado em uma equipe na qual ocorriam atritos e ninguém se falava. Porém, foram campeões porque compensavam essa fragilidade na comunicação com uma superioridade técnica e física – ainda que um ambiente conflituoso como esse não favoreça a motivação dos jogadores e gere estresse. Castellani entende que o grupo mencionado, se tivesse tido uma boa comunicação, provavelmente teria alcançado resultados ainda melhores.

Ainda, Castellani afirma que o recorte teórico adotado para a tese se mostrou pertinente e importante para o estudo dos processos de grupo no futebol profissional. Segundo ele, a psicologia social postulada por Pichon-Rivière, assim como as leituras realizadas por seus seguidores, não só permitiu como também favoreceu as elaborações e interpretações acerca das informações obtidas ao longo da pesquisa de campo com os três clubes investigados.

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