HC trata caso de síndrome rara com único paciente diagnosticado no país

Equipe do Hospital das Clínicas da USP tenta reverter diagnóstico tardio referente a um caso de Síndrome do Triplo A e propõe inovações

Dez de junho de 2002, maternidade Santa Fé, Teresina, Piauí. Ali nascia Renato (todos os nomes desta reportagem são fictícios para proteger a identidade dos entrevistados e em respeito ao código de ética médico), segundo filho de um casal de primos com apenas uma filha. Aparentemente uma criança sem nenhum problema, mas a vontade excessiva de mamar e o choro que não cessava começou a preocupar a mãe, Alessandra. Ela já não o colocava para dormir no berço durante a noite, devido sua inquietude. Com algo nitidamente o incomodando, a mãe foi atrás de vários exames para tentar descobrir o que o filho tinha. Apenas 9 anos mais tarde, depois de muitos diagnósticos equivocados por conta do desconhecimento geral da doença que ele possuía, foi descoberto que Renato era portador de uma patologia genética rara chamada Síndrome do Triplo A, sendo o dele o único caso catalogado no país. Assim como Renato, diversas outras crianças podem estar sofrendo ou até indo a óbito com o mesmo problema e não são corretamente diagnosticadas, e foi exatamente isso que desencadeou esse estudo. Ao expor o caso dele, pretende-se mostrar como essa síndrome pode ser facilmente confundida, é necessário disseminar a existência dela para diminuir as consequências, torná-la mais clara e uma opção a ser considerada na hora que os sintomas surgirem.

Luta pelo diagnóstico correto

Renato passou por diversos tipos de exames e nada de uma solução surgir. Depois de ser atendido pela tia pediatra, ele foi a um endocrinologista, gastrologista e cardiologista. Nada. O garoto continuava a chorar muito e a mamar excessivamente, mas nunca parecia suprir suas necessidades. Alessandra ficava cada vez mais apreensiva, e sua sogra sugeriu que ela fosse para São Paulo atrás de um cardiologista, pois a família tinha um histórico de problemas cardíacos. Conseguida uma consulta na grande metrópole, eles foram encaminhados para um neurologista. Lá, o menino, já com 3 anos e 7 meses, foi diagnosticado com Adrenoleucodistrofia (ALD, também conhecida como Doença de Lorenzo) e Alessandra e o filho voltaram para Teresina. Mesmo com o tratamento, nada de melhora, e a insegurança sobre a saúde do garoto persistia.

Ele vomitava muito, possuía os lábios roxo, não crescia e não engordava. Depois de mais exames, foi detectado por um endocrinologista um problema na tireoide. Paralelo a toda essa situação, a mãe resolveu procurar terapias alternativas que auxiliassem de alguma forma no desenvolvimento do filho: terapia ocupacional, psicólogo, hidroterapia, qualquer coisa que pudesse ajudar. Nessa procura, ela conheceu Ana, uma terapeuta de Reike (prática que tem por base a crença na energia vital universal, ki, manipulável através da imposição das mãos), e mal imaginava ela que esse encontro iria mudar a vida de seu filho para sempre.

Alessandra contou toda a luta do filho para Ana, que coincidentemente era mãe de João, um jovem que havia acabado de se mudar para São Paulo para estudar na Faculdade de Medicina da USP. Ana narrou o caso de Renato para o estudante, que, novamente por coincidência (Ana prefere chamar de Deus), possuía como tutora a endocrinologista e professora Berenice Bilharinho de Mendonça. Ao relatar o caso a ela, em um dos encontros da tutoria, a professora logo agendou uma consulta para o garoto no Hospital das Clínicas.

O paciente chegou ao Hospital bem magro, com um quadro de insuficiência adrenal primária. A mãe relatou que ele vomitava muito, não conseguia se alimentar direito. A criança ficou quase 2 meses internada, fazendo exames, controlando taxas, mas sempre com várias equipes conversando e acompanhando o caso, incluindo a Dra. Berenice. Após vários testes, finalmente chegou-se ao diagnóstico correto.

Mas, afinal, o que é essa Síndrome?  

A síndrome do Triplo A é uma doença bastante rara, genética, de origem autossômica recessiva, ou seja, só se expressa se o indivíduo possuir dois genes causadores da patologia, como explica o infográfico abaixo:

Se os pais forem portadores do gene para essa doença e a criança herdar um gene doente do pai e um da mãe (25%), ela nasce com a síndrome.(imagem: reprodução)

Ela recebe esse nome porque os pacientes possuem doenças com três ‘As’: Alacrimia, do inglês, não produção de lágrimas; Achalasia (acalásia, em português), que ocorre devido a uma falha no relaxamento de um músculo chamado cárdia, com alteração dos movimentos do esôfago necessários para a deglutição , gerando dificuldade na passagem do alimento sem que haja um estreitamento completo do canal; e Adrenal insufficiency, ou seja, insuficiência da produção de cortisol pela glândula supra-renal. É uma doença degenerativa que está também associada a uma disfunção do sistema nervoso autônomo e a uma  neurodegeneração evolutiva, que pode levar a óbito pela falta da produção do cortisol, hormônio com funções vitais no organismo.

Apesar de a não produção de lágrima estar presente desde a infância, esse é o sintoma menos notado. Essa doença começa a se manifestar mesmo é pelo problema da acalásia, gerando vômito, dificuldade para engolir, regurgitação, e como esses são sintomas comuns em bebês e crianças, muitas vezes a doença correta não é detectada. Quando surge a insuficiência da supra-renal, lá por volta de 1 a 3 anos, é que se faz a associação com a síndrome do Triplo A.

Quando Renato chegou ao HC, diagnosticado apenas com um quadro de insuficiência adrenal primária, a doutora Berenice explica como descobriu o diagnóstico correto: “A insuficiência da supra-renal dele não era a comum, causada por defeito apenas na produção do cortisol, no caso dele estava associada a acalásia. Somado a isso, a mãe informou que ele não possuía lágrimas, o que foi confirmado por um teste simples. Como essa doença estava descrita, é conhecida a uns 30 anos, e defeitos no gene AAAS codifica uma proteína chamada Aladin, um nome fácil de guardar, chegamos a síndrome do Triplo A”. Mesmo com todas essas evidências, a professora conta que ainda fez questão de fazer contato com a pesquisadora alemã, Angela Huebner, que estudou o gene e confirmou o diagnóstico molecular.

Tratamento, falha no SUS e inovações

Sobre o caso estudado, Berenice explica o que ela considera que foi mais relevante: “O principal que fizemos foi esclarecer o diagnóstico. Isso tem um impacto importante, não saber o que a criança tem é muito angustiante para os pais e bem complicado para o paciente”. Em relação ao tratamento, foi resolvido o problema da Cárdia, através de uma cirurgia para diminuir a obstrução, e hoje Renato também é tratado com um colírio de lágrima artificial. Somado a isso, foi feita uma avaliação psicológica que deu um suporte para a família e para o garoto, e hoje ele é tido como uma criança absolutamente normal e muito inteligente. As duas doses diárias de hidrocortisona que ele precisa ingerir para suprir o problema de sua supra-renal também foi acertada.

Aproveitando a oportunidade, a doutora Berenice denunciou um problema do nosso sistema público de saúde, que é a falta de produção da hidrocortisona, o que prejudica os pacientes que precisam desse hormônio vital em todo o país: “Nossos pacientes aqui do Hospital das Clínicas são abastecidos com a hidrocortisona que é feita aqui, mas obviamente não consegue abastecer todos os pacientes que precisam no Brasil. Há 2 anos foi instituído um decreto afirmando que a hidrocortisona ia ser produzida no sistema público de saúde, mas até agora a gente não vê isso. Os pacientes com poder aquisitivo importam de outras países, vizinhos nossos como Argentina, Colômbia e Peru possuem, o ideal seria que tivéssemos a medicação aqui no Brasil”.

Em relação a Renato, a doutora não ficou só no básico, e ela conta o que está fazendo de inovação no seu tratamento: “Pacientes renais crônicos e pacientes transplantados [assim como as vítimas da síndrome do Triplo A] possuem estresse oxidativo aumentado, e neles se usa um inibidor desse estresse, a acetilcisteína. Esse é um trabalho do doutor Antonio Carlos Seguro, da Faculdade de Medicina, e eu conversei com ele e propusemos para a mãe essa terapia. A mãe aceitou como um estudo experimental, já que a droga usada é bem tolerada, sem efeitos colaterais, com várias crianças transplantadas usando, então tínhamos segurança com relação a aplicação dela”. Sobre os resultados disso, a professora afirma que ainda está muito recente para se tomar conclusões: “O estresse oxidativo do paciente diminuiu, mas o que isso pode representar ainda não sabemos. Temos que lembrar que essa é uma doença degenerativa, que vai evoluindo ao longo da vida. As células que ele já perdeu não voltam mais, mas ele é o primeiro caso que está usando em vida uma droga não para corrigir uma deficiência, mas para tentar evitar a progressão da doença neurodegenerativa.”

O garoto hoje está na puberdade e leva uma vida normal. Possui uma alta expectativa de vida desde que continue adequadamente tratado. Espera-se que todos os Renatos do Brasil não sofram tanto quanto esse e tenham um diagnóstico preciso mais rapidamente. Apesar de tudo, a mãe diz ser eternamente grata, pois há outros em situações bem piores.

 

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