Casos de alienação parental no Brasil disparam em uma década

Lei que embasa disputas jurídicas enfrenta críticas e propostas de revogação

Aplicações da Lei de Alienação Parental tornam divórcios e situações de abuso doméstico ainda mais dramáticos, e frequentemente pesam para o lado materno / Imagem: Reprodução - José Luis Navarro

Por Bruna Correia, Jenny Perossi, Luiza Miyadaira, Otávio Aguiar e Tauane Pereira Ybarra

O número de ações de alienação parental no Brasil cresceu mais de dez vezes em menos de uma década, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2014, foram registrados 401 processos, enquanto, até outubro de 2023, o total chegou a 5.152. O aumento mais significativo ocorreu a partir de 2016, quando o número de ações saltou para 2.225. O pico foi registrado em 2022, com 5.824 casos — um crescimento de 1.456% em relação a 2014.

Nos últimos cinco anos, o Brasil registrou, em média, 4,5 mil ações de alienação parental por ano, conforme o CNJ.

O que é a Lei de Alienação Parental?

A Lei Federal 12.318/2010, conhecida como Lei de Alienação Parental (LAP), surgiu de projeto do deputado Regis de Oliveira (PSC-SP). A legislação propõe instrumentos processuais para inibir atos de alienação parental, como aplicação de multa, advertência e alteração de guarda. O texto define alienação parental como “interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores […] para repudiar genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.” No papel, o objetivo da LAP é proteger crianças e adolescentes de qualquer tipo de abuso físico ou psicológico durante processos de divórcio.

O termo Alienação Parental foi cunhado na década de 1980 pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner. Utilizando-se de expressões como “lavage

Richard Alan Gardner faleceu em 2003 / Imagem: Reprodução Universidade de Columbia

m cerebral” e “programação cerebral”, Gardner definiu a Síndrome de Alienação Parental (SAP) como uma espécie de “programação psicológica” da criança por parte de um dos genitores.

A Lei brasileira substituiu as palavras “pai” e “mãe”, que na teoria de Gardner representavam arquétipos específicos da experiência heteronormativa, pelo termo “genitor”. Isso evidencia que, aos olhos da Lei, a alienação parental pode ser praticada por pessoas independente do gênero.

Além disso, não consta no texto da LAP o termo Síndrome de Alienação Parental, substituído pela definição “ato de alienação parental”. Camila Pires, mestre em Psicologia Social do Instituto de Psicologia (IP-USP) afirmou, em entrevista ao Jornal da USP, que apesar das alterações o texto ainda faz diversas referências à teoria formulada por Gardner, portanto pode-se concluir que a Lei foi construída a partir de seus conceitos. Richard Gardner acreditava que as mulheres eram as principais responsáveis pela prática e afirmava que eram, em sua maioria, motivadas por sentimentos de vingança.

De quem é a culpa?

Para a Agência Universitária de Notícias (AUN), a professora do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP), Iara Pereira Ribeiro, defende que por razões biossociais são as mães que se comprometem mais com a criação e educação dos filhos, e são elas quem costumam ter a guarda unilateral. “No caso da guarda ser compartilhada é em seu domicílio que é fixado o domicílio da criança, por isso, são elas as que mais são acusadas de alienação e é sobre elas que recai a determinação de acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial”, pontua.

A professora cita o artigo “Alienação parental e o sistema de justiça brasileiro: uma abordagem empírica” (2016), dos pesquisadores Sergio Noji e Mariana Cunha Andrade. No estudo, foram analisados 83 casos de ação de alienação parental, e destes, 55 tinham como suposto alienador pessoa do sexo feminino. Desse grupo, em 23 casos a alienação foi confirmada em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), e em 32 casos, não. Segundo dados apurados pelos pesquisadores, 72% das decisões envolviam disputas relacionadas à guarda e visitas. Apenas 10% das ações visavam especificamente a declaração de alienação parental. 

Os dados foram coletados a partir das emendas de decisões judiciais baseadas em processos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e de Minas Gerais (TJMG), entre 2009 e 2014, selecionando casos em que o tema da alienação parental era central. Foram eliminados recursos sem mérito relevante ou protegidos por segredo de justiça. Também segundo o estudo, em 63% dos casos, foram realizadas perícias psicossociais para embasar decisões. Em 46% das decisões, a alienação parental foi identificada pelos magistrados, mas em 54% isso não ocorreu, principalmente devido à insuficiência de provas.

A LAP realmente protege as crianças?

O exercício da LAP no Brasil já foi questionado pela Organização das Nações Unidas (ONU), Ministério Público Federal (MPF), Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), além de especialistas e parlamentares. Ana Paula Medeiros, psicóloga no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), acredita que a forma que a lei é aplicada é incorreta. “A falha da lei da alienação parental está em considerar que o vínculo entre pai e filho vai [necessariamente] se estabelecer”, defende. “Acontece de uma criança não ter vínculo com o pai, e a criança pode dizer que não quer ir. Então, ele [o pai] vai lá, faz um boletim de ocorrência contando que a mãe não deixou ele ver o filho. A principal lacuna que vejo é essa: a lei não considera que os processos de vinculação entre pai e filho são gradativos, e não acontecem de forma instantânea”, pontua.

“Além disso, os serviços de saúde mental municipais e o judiciário não têm recursos para trabalhar esse estabelecimento de vínculo de forma tranquila e acompanhada. Esse trabalho deveria ser feito pela assistência social, mas sabemos que esses serviços lidam com muitas outras questões, o que acaba resultando em um acompanhamento esporádico, muitas vezes apenas uma vez por mês”.

Aplicação indevida da Lei em casos de violência doméstica

No Brasil, cresce o número de casos de violência doméstica e abuso sexual infantil onde são aplicadas medidas da Lei de Alienação Parental. Os acusados, em sua maioria homens, alegam que as denúncias não passam de tentativa de difamação do genitor aos olhos da criança ou adolescente. Nesses casos, a LAP pode ser acionada e usada como ferramenta para acobertar crimes domésticos. O resultado são mulheres que, ao tentar se livrar de situações de abuso e violência conjugal, acabam por perder a guarda legal de seus filhos. Em certos casos, a lei permite – e obriga – que um menor vítima de violência sexual volte a conviver com seu abusador. Essa prática foi defendida por Richard Gardner, que sugeriu também o encarceramento temporário de crianças e adolescentes que denunciem abusos, bem como mães que decidam levar as denúncias à justiça.

Aplicações da LAI muitas vezes escondem maus tratos e violência doméstica / Imagem: Edilson Rodrigues – Agência Senado

A psicóloga Karla Valente, para a AUN, explica que quando os responsáveis judicializam a situação, é papel do psicólogo, quando solicitado por um advogado, elaborar um laudo atestando o que ocorre. “O profissional identifica se está realmente acontecendo uma situação de alienação ali naquela família, e uma vez que a gente identifica isso, a gente trabalha com a criança para mediar a situação e restaurar o vínculo com o genitor”, alega.

“Óbvio, resguardando a integridade física e psicológica da criança, se um dos pais apresentar um risco à criança, deve-se orientar ao responsável para buscar os direitos de proteção dessa criança”, pontua. “Acho muito importante a gente focar na criança, usar técnicas e instrumentos confiáveis para fazer um diagnóstico do que está acontecendo naquela situação. O foco do atendimento é a criança.”, acrescenta. A psicóloga diz que evita judicialização e prioriza o diálogo durante o tratamento, ponderando com os genitores e ensinando instrumentos à criança para ajudá-la a lidar com a situação.

Ana Paula Medeiros acrescenta: “A nossa função na avaliação psicológica é verificar se o vínculo está preservado e se há ou não um motivo para que esse vínculo esteja enfraquecido ou, de repente, destruído. Vamos dar os exemplos que mais geram discussão entre as pessoas, como a questão da violência e do abuso. Sabemos que, obviamente, uma criança que presencia o pai agredindo a mãe vai ter o vínculo com o pai enfraquecido, mas isso tem um motivo: a própria situação de violência. Às vezes, esse pai afirma que a mãe está alienando a criança, mas não é isso”.

“Infelizmente, há um imaginário de que, por exemplo, um homem violento com a mulher pode não ser um pai violento. Isso é falso. Quem reage de forma violenta quando é contrariado irá reagir da mesma maneira, independentemente de quem o contraria.”, argumenta Iara Pereira Ribeiro. “A violência é a forma como reage, com maior ou menor grau. Um bom pai não espanca a mãe. Quem espanca, não ama, não cuida, não educa. Simples assim. Se deseja a guarda compartilhada deve procurar ajuda para tratar o comportamento violento. A violência é inaceitável”, acrescenta.

Esforços pela revogação da Lei

Em entrevista para a AUN, a deputada Sâmia Bomfim defende que o machismo se apropria da legislação brasileira para aprofundar a violência contra mulheres e crianças. “Agora, [a lei] segue tramitando pelas demais comissões, existe muita pressão do movimento de mulheres e do movimento feminista. Esse tema ganhou força nos últimos anos porque a lei, ao invés de proteger as crianças, acaba perpetuando situações de violência contra elas e contra suas mães”, pontua. Mais de uma década após a sanção da lei, críticas que antes se restringiam aos movimentos da sociedade civil ganharam força no Congresso Nacional. Atualmente, três propostas de revogação da norma tramitam na Casa: uma iniciativa popular, um projeto apresentado pelas deputadas do PSOL Fernanda Melchionna, Sâmia Bomfim e Vivi Reis e outro protocolado pelo senador Magno Malta (PL-ES). Para virar lei, o texto precisa ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Deputada Sâmia Bomfim, junto a outras duas deputadas do Partido Socialismo e Liberdade, apresentou um projeto contra a LAI na Câmara dos Deputados / Imagem: Reprodução PSOL

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