Nos últimos 20 anos, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP estudam os mecanismos de regeneração do Sistema Nervoso Central (SNC). Antes, era consenso na comunidade científica sua incapacidade de se regenerar. Mas, pesquisas apontaram a possibilidade de algumas células do SNC se regenerarem, como, por exemplo, a retina. Neste ano, um novo estudo investiga a relação entre o fator de ativação de plaquetas (PAF, da sigla em inglês platelet-activating factor) e a ação neurorregeneradora de células-tronco retinianas.
A retina é uma fina camada de tecido nervoso sensível à luz e localizada no interior do olho, responsável por transformar o estímulo luminoso em estímulo nervoso e enviá-lo para o cérebro, onde as imagens são lidas. Doenças muito conhecidas, como glaucoma e retinopatia diabética, causam a degeneração dos neurônios da retina. “Até hoje, não temos tratamentos que consigam reverter esse processo”, diz Carolina Beltrame Del Debbio, professora do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do ICB.
No laboratório, surgiu a ideia de estudar os mecanismos de regeneração da retina para o desenvolvimento de novas terapias. “Percebemos que a retina tem um potencial de regeneração, principalmente nos mamíferos, mas ele precisa ser ativado, porque não acontece naturalmente”, esclarece. “Hoje, sabemos que algumas ferramentas científicas podem ajudar o tecido a reverter a degeneração. Uma das melhores que estamos estudando são as células-tronco”, continua Carolina.
As células-tronco são capazes de produzir células novas e funcionais e regenerar tecidos danificados. “Quando estudamos o olho, percebemos que células de glia ou de epitélio podiam ser estimuladas para se tornarem células-tronco, depois se diferenciarem em neurônios e, por fim, fazerem a regeneração”, explica a professora. No Laboratório de Células Retinianas do ICB, os cientistas estudam os mecanismos que atuam nessa transformação para descobrir como manipulá-los nos pacientes.
“Cada aluno do laboratório estuda um fator ou via de sinalização diferente para entender se eles contribuem positiva ou negativamente na ativação das células-tronco”, conta Carolina. Neste estudo, Bárbara Dalmaso, primeira autora do artigo, investigou o PAF, fosfolipídio considerado um potente mediador de reações de vasodilatação, anafilaxia (reação alérgica) e inflamação, além de estar associado ao processo de divisão celular, muito recorrente em células-tronco.
Antes dos testes, as pesquisadoras recolheram células de camundongos, que possuem mecanismos de ativação semelhantes aos dos humanos. Em seguida, as células epiteliais dos animais foram transformadas em células-tronco e depois em células da retina. Na etapa seguinte, as cientistas realizaram testes de ativação e inibição do PAF. Elas descobriram que, quando ativado, o fosfolipídio estimula a diferenciação celular. Mas, se inibido, esse processo não acontece e a célula-tronco mantém sua forma original.
Olhar para o futuro
Carolina Beltrame ressalta que a ativação e inibição do PAF não podem ser classificadas simplesmente como bom ou ruim, pois depende do propósito do pesquisador. “Se queremos regenerar um tecido, é muito importante que a célula-tronco trabalhe por mais tempo. Mas, para que ela seja ativa e funcional, essa célula precisa se diferenciar”, afirma. “Durante nosso trabalho, também percebemos que se inibimos esse fator durante o desenvolvimento do animal, ele pode ter problemas de visão no futuro, já que a célula-tronco demora mais tempo para se transformar em uma célula de retina”, completa a professora.
Ela conta que o laboratório tem investido em novos métodos de estudo, mais conclusivos que os modelos animais. Um deles é a cultura organoide. Os organoides são cópias 3D pequenas e simplificadas de órgãos criados fora de um corpo vivo. “Podemos transformar qualquer célula viva de um paciente em célula-tronco e depois transformá-la em um “mini-órgão”. Em uma placa de Petri, por exemplo, conseguimos produzir uma mini-retina”, explica a professora. Essa cultura é uma alternativa para o teste de medicamentos e para o desenvolvimento de terapias personalizadas.
“Essa área está sendo construída com muita responsabilidade e os testes clínicos ainda estão começando. O resultado perfeito, de cura ou regressão, ainda não chegou”, diz a pesquisadora. Apesar disso, Carolina reafirma os resultados promissores dos estudos com células-tronco e a importância das pesquisas de base, responsáveis por construir cada bloco de conhecimento para investigações maiores. “Eventualmente, conseguiremos desenvolver uma terapia que use células-tronco de forma eficiente para regenerar tecidos nervosos”.
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