Estudos e projetos da Escola de Enfermagem USP se voltam à saúde sexual de populações de rua

“Carrinho Solidário” colocado em um dos corredores de maior fluxo da EE-USP. Foto: Reprodução

Há algumas décadas, têm-se buscado, em diversas áreas da saúde, formas mais humanizadas, eficientes e amplas de compreensão das questões sexuais e reprodutivas femininas. Desde vertentes da ginecologia e obstetrícia que buscam melhorar o bem-estar em todas as fases da vida reprodutiva, passando pela preocupação da infectologia com o tratamento e prevenção de ISTs até novas abordagens psicossociais no atendimento médico a mulheres, esse é um campo em expansão. Porém, são mais escassas as iniciativas voltadas para a população sem teto, vulnerável a muitos tipos de transtornos, infecções e violência. Algumas das questões que afetam populações de rua em vulnerabilidade sexual e reprodutiva são: altas taxas de ISTs; sexo transacional (ou seja, feito sob condição de pagamento ou troca material), sobretudo para sustentar dependência de substâncias; violência sexual, raramente reportada às autoridades; e pobreza menstrual. Por estes motivos, vêm sendo desenvolvidos na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE-USP) projetos e estudos focados na saúde reprodutiva e sexual dessas populações.

A professora Nayara Gonçalves Barbosa, do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica (ENP) da EE-USP, trabalha há alguns anos com essa questão. A elaboração de um projeto de extensão voltado à comunidade começou quando a professora, sob supervisão de Flávia Azevedo Gomes-Sponholz, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP), realizou um estudo de pós-doutorado, publicado em 2023, sob o título Sexual assault and vulnerability to sexually transmitted infections among homeless Brazilian women: a cross sectional qualitative study (Violência sexual e vulnerabilidade a infecções sexualmente transmissíveis entre mulheres brasileiras em situação de rua: um estudo qualitativo transversal).

Nesse artigo foi feito um estudo qualitativo transversal sobre as experiências de mulheres sem-teto, destacando a interseção de fatores sociais, econômicos e de saúde que contribuem para sua vulnerabilidade. Os resultados revelaram que elas enfrentam situações complexas de violência e negligência nas ruas, que destacam a necessidade de políticas públicas e intervenções de saúde pública voltadas para a proteção e o apoio às mulheres sem-teto, visando mitigar sua vulnerabilidade a ISTs e promover sua saúde sexual e reprodutiva. Quanto ao trabalho com essas populações, Nayara explica alguns cuidados: “Trabalhar com populações em situação de vulnerabilidade é extremamente desafiador. Ao adentrar no território, no espaço geográfico, cultural e existencial desses grupos, o pesquisador é considerado um “estrangeiro”, e existe uma desconfiança natural em relação às pessoas externas. A construção do vínculo é um processo que ocorre paulatinamente, por meio do estabelecimento de relações de confiança, e transparência quanto aos objetivos do trabalho realizado e de seus potenciais benefícios. Creio que o respeito, o contato humano, o olhar, a escuta, a criação de relações horizontais, e de gestos simples como reconhecer e chamar a pessoa pelo próprio nome ou apelido tenham um significado profundo para essas pessoas cuja vivência nas ruas transfigura suas identidades, noção de cidadania e os invisibilizam.”

Além do artigo mais recente, Nayara também abordou o tema em um estudo publicado em 2022, Attention to Women’s Sexual and Reproductive Health at the Street Outreach Office (Atenção à Saúde Sexual e Reprodutiva da Mulher na Consultoria na Rua). Realizado com base em entrevistas com mulheres sem-teto, o artigo tem o objetivo de entender estratégias de cuidado para elas. “As populações em situação de vulnerabilidade vivenciam cotidianamente condições que infringem os direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos e de uma vida com dignidade. No que tange às mulheres em situação de rua denota-se o limitado acesso à contracepção, com risco de gestações não planejadas, com impacto nos desfechos em saúde dessa população, com maior risco de mortalidade materna e infantil. Identificam-se dificuldades em relação ao uso regular de contraceptivos hormonais por via oral ou injetáveis, bem como de preservativos internos e externos, o que corrobora para um maior risco de aquisição de Infecções Sexualmente Transmissíveis, devido à dinâmica de vida nas ruas e os desafios no planejamento das ações e do autocuidado.”

A conclusão do estudo foi de que a implementação de uma perspectiva diferente, considerando o princípio da equidade para a saúde das mulheres em situação de rua, é condição essencial para a garantia de seus direitos humanos, sexuais e reprodutivos. Algumas políticas já existem, porém é um sistema deficitário, como explica a professora: “A existência de políticas públicas, como a Lei 16.806, implantada no município de São Paulo prevê a disponibilização de métodos contraceptivos reversíveis de longa duração para essa população, com o uso do implante hormonal subdérmico e do dispositivo intrauterino, e representam importantes estratégias para o planejamento reprodutivo dessa população. No entanto, essa não é a realidade de todas as regiões brasileiras, sobretudo devido às iniquidades e disparidades no território e os desafios na obtenção desses insumos e qualificação dos profissionais que atuam na rede pública.”

Com base nessas pesquisas e experiências, foi criado o Projeto Acolhe na Escola de Enfermagem. Ele não apenas busca oferecer assistência direta à saúde sexual e reprodutiva de grupos vulneráveis, mas também integra-se ao percurso formativo de estudantes de graduação e pós-graduação da EE-USP. Há também impacto social significativo, com a promoção de ações de educação e saúde, bem como a arrecadação de insumos essenciais para a população em situação de rua. Sobre essas ações sociais, Nayara destaca a importância de múltiplos atores capacitados: “A universidade tem em seu papel social a atuação junto a comunidade na identificação de problemas e busca de alternativas para superá-los e outras questões de relevância social para a população. Temos promovido a discussão acerca saúde de mulheres em situação de rua na graduação e pós-graduação, além da realização de projetos de extensão e ações na comunidade com ações diretas junto a esse público e a realização de pesquisas para a geração de evidências científicas que possam contribuir na sensibilização de profissionais, gestores e na elaboração de políticas públicas. As parcerias entre a universidade, empresas e ONGs contribuem para potencializar forças para a execução de projetos e ações junto a essa população. O reconhecimento e colaboração com ações realizadas nas redes de atenção à saúde, equipamentos sociais como ONGs, igrejas, associações que desenvolvem ações para o apoio para as pessoas em situação de vulnerabilidade no território é um dos caminhos possíveis.”

A primeira ação do projeto ocorreu em 8 de março de 2024, Dia Internacional da Mulher, com o evento “Menstruação: Promoção de Saúde e Dignidade”. Organizado por diversos departamentos e grupos acadêmicos da Faculdade, o evento contou com o apoio da sociedade civil, resultando na arrecadação de 40 pacotes de absorventes descartáveis. Essas doações serão destinadas aos serviços de atendimento voltados para a população em situação de rua. Para mulheres e pessoas transgênero nessas condições, o período menstrual é uma experiência marcada por desafios físicos e emocionais. A falta de condições sanitárias adequadas durante esse momento resulta em situações precárias, levando à busca por alternativas improvisadas e práticas de risco para lidar com o sangramento menstrual. A vergonha e o estigma associados à menstruação exacerbam o sofrimento emocional dessa população.

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