
No ensaio A expressão musical dos Estados Unidos, o autor Mário de Andrade destaca a “contribuição do negro” como um dos principais aspectos da cultura americana. O estudo foi apresentado em 1940, quando o país tentou implementar propostas pan-americanistas no continente. Nesse período, há produções do escritor que trazem um olhar crítico à questão racial nos EUA, que passava por um período de segregação.
O texto foi publicado na coletânea Lições de Vida Americana, formado por vários folhetos que tratavam da relação brasileira com a federação norte-americana. “O Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu), no Rio de Janeiro, foi quem recebeu os conferencistas, e Mário de Andrade foi um dos convidados para apresentar essas conferências publicadas como opúsculos”, explica Angela Teodoro Grillo, professora do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) que analisou o texto e documentos no acervo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), em sua pesquisa de pós-doutorado.
No texto, o autor desenvolveu impressões sobre características da cultura norte-americana. Para a pesquisadora, a parte que mais se sobressai é o reconhecimento da contribuição do negro: “Há um olhar inédito e crítico do estudioso afro-latino para a cultura estadunidense”. De acordo com análises da correspondência de Mário feita pela pesquisadora, há uma reação de surpresa entre os leitores estadunidenses do ensaio.

Segundo ela, a presença do tópico mostra a visão influenciada pelo conhecimento da cultura afro-brasileira que o estudioso tinha. “Ao reconhecer a contribuição africana, Mário de Andrade amplia seu olhar para além das fronteiras e compreende aspectos culturais no processo de diáspora [uma forma de deslocamento ou dispersão, normalmente incentivada ou forçada] dos povos africanos.”
O autor evidencia a contribuição cultural dos afro-americanos durante a segregação racial nos EUA, momento marcado pelo racismo e pelos ideais de supremacia branca. “Aqui convém lembrar uma outra força importantíssima que estava destinada a atingir toda a música atlântica das duas Américas, o negro”, Mário escreveu.
Essa parte do ensaio pode ser interpretada como uma provocação ao país norte-americano, de acordo com Angela. Mário de Andrade sabia da tensão racial no país e, por isso, deu destaque à população negra. Em carta a Paulo Duarte, o poeta pediu que o amigo, naquele momento exilado nos EUA, mostrasse o texto a estrangeiros para provar que “o Brasil também descobriu os Estados Unidos, só de pique”.
O convite para escrever o estudo foi feito depois de Mário de Andrade ter sido o primeiro diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. Durante o período em que esteve à frente da instituição, de 1935 a 1938, ele ganhou visibilidade e foi procurado por pesquisadores europeus e estadunidenses. “Naquela época, ele conquistou o título de grande conhecedor da cultura brasileira”, aponta a pesquisadora.
A aproximação do autor com o norte do continente foi impulsionada pela Política de Boa Vizinhança dos EUA – iniciativa ideológica que buscava implementar a cultura estadunidense nos países latinos. A música, objeto de estudo de Mário de Andrade, serviu como instrumento desse processo.

Angela pontua que muitos artistas se mostraram animados com a possibilidade de intercâmbio e com as propostas pan-americanistas. Já Mário de Andrade as problematiza, provavelmente pela “consciência racial que os outros brasileiros envolvidos com o pan-americanismo não tinham”.
“As pessoas que mostravam mais entusiasmo eram brancas e não encontravam barreiras para entrar nos Estados Unidos”, diz a docente.
A desconfiança de Mário pelo país é justificada, principalmente, pela violência contra a comunidade afro-americana. Por isso, o escritor nunca aceitou os convites para viajar até os EUA.
O incômodo e a recusa ganharam espaço no poema “Nova Canção de Dixie”, de 1944, conforme análise da pesquisadora em sua tese de doutorado, O losango negro na poesia de Mário de Andrade. “Ele afirma, no poema e em carta ao amigo Manuel Bandeira, que não vai para um lugar onde existe a lei de Lynch [prática de linchamento contra pessoas negras]”, conta Angela.
Na pesquisa O pan-americanismo sob a ótica de Mário de Andrade, e de outros intérpretes, Angela chama a atenção para a relação entre o conteúdo negro de Mário e a criação ensaística e literária dele. “Mário de Andrade era um homem preto na elite intelectual branca brasileira. Desse modo, o olhar dele passa pela experiência de ser preto em um continente que tem divisão racial.”
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