Questão racial é destaque em texto pan-americanista de Mário de Andrade

Poeta reconheceu contribuição da comunidade afro-descendente para a cultura estadunidense em um estudo apresentado em 1940

Fotomontagem com Mário de Andrade e o Instituto de Estudos Brasileiros. – Foto: Rian Damasceno e Wikimedia Commons

No ensaio A expressão musical dos Estados Unidos, o autor Mário de Andrade destaca a “contribuição do negro” como um dos principais aspectos da cultura americana. O estudo foi apresentado em 1940, quando o país tentou implementar propostas pan-americanistas no continente. Nesse período, há produções do escritor que trazem um olhar crítico à questão racial nos EUA, que passava por um período de segregação.

O texto foi publicado na coletânea Lições de Vida Americana, formado por vários folhetos que tratavam da relação brasileira com a federação norte-americana. “O Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu), no Rio de Janeiro, foi quem recebeu os conferencistas, e Mário de Andrade foi um dos convidados para apresentar essas conferências publicadas como opúsculos”, explica Angela Teodoro Grillo, professora do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) que analisou o texto e documentos no acervo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), em sua pesquisa de pós-doutorado.

No texto, o autor desenvolveu impressões sobre características da cultura norte-americana. Para a pesquisadora, a parte que mais se sobressai é o reconhecimento da contribuição do negro: “Há um olhar inédito e crítico do estudioso afro-latino para a cultura estadunidense”. De acordo com análises da correspondência de Mário feita pela pesquisadora, há uma reação de surpresa entre os leitores estadunidenses do ensaio.

Cartas escritas por professores universitários dos EUA para Mário de Andrade demonstram surpresa após ler o ensaio – Foto: Acervo Mário de Andrade – IEB-USP

Segundo ela, a presença do tópico mostra a visão influenciada pelo conhecimento da cultura afro-brasileira que o estudioso tinha. “Ao reconhecer a contribuição africana, Mário de Andrade amplia seu olhar para além das fronteiras e compreende aspectos culturais no processo de diáspora [uma forma de deslocamento ou dispersão, normalmente incentivada ou forçada] dos povos africanos.”

O autor evidencia a contribuição cultural dos afro-americanos durante a segregação racial nos EUA, momento marcado pelo racismo e pelos ideais de supremacia branca. “Aqui convém lembrar uma outra força importantíssima que estava destinada a atingir toda a música atlântica das duas Américas, o negro”, Mário escreveu.

Essa parte do ensaio pode ser interpretada como uma provocação ao país norte-americano, de acordo com Angela. Mário de Andrade sabia da tensão racial no país e, por isso, deu destaque à população negra. Em carta a Paulo Duarte, o poeta pediu que o amigo, naquele momento exilado nos EUA, mostrasse o texto a estrangeiros para provar que “o Brasil também descobriu os Estados Unidos, só de pique”.

O convite para escrever o estudo foi feito depois de Mário de Andrade ter sido o primeiro diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. Durante o período em que esteve à frente da instituição, de 1935 a 1938, ele ganhou visibilidade e foi procurado por pesquisadores europeus e estadunidenses. “Naquela época, ele conquistou o título de grande conhecedor da cultura brasileira”, aponta a pesquisadora.

A aproximação do autor com o norte do continente foi impulsionada pela Política de Boa Vizinhança dos EUA – iniciativa ideológica que buscava implementar a cultura estadunidense nos países latinos. A música, objeto de estudo de Mário de Andrade, serviu como instrumento desse processo. 

Cartas de estadunidenses que leram o ensaio criticam Mário de Andrade por não ter ido aos EUA – Foto: Acervo Mário de Andrade – IEB-USP

Angela pontua que muitos artistas se mostraram animados com a possibilidade de intercâmbio e com as propostas pan-americanistas. Já Mário de Andrade as problematiza, provavelmente pela “consciência racial que os outros brasileiros envolvidos com o pan-americanismo não tinham”.

“As pessoas que mostravam mais entusiasmo eram brancas e não encontravam barreiras para entrar nos Estados Unidos”, diz a docente. 

A desconfiança de Mário pelo país é justificada, principalmente, pela violência contra a comunidade afro-americana. Por isso, o escritor nunca aceitou os convites para viajar até os EUA. 

O incômodo e a recusa ganharam espaço no poema “Nova Canção de Dixie”, de 1944, conforme análise da pesquisadora em sua tese de doutorado, O losango negro na poesia de Mário de Andrade. “Ele afirma, no poema e em carta ao amigo Manuel Bandeira, que não vai para um lugar onde existe a lei de Lynch [prática de linchamento contra pessoas negras]”, conta Angela.

Na pesquisa O pan-americanismo sob a ótica de Mário de Andrade, e de outros intérpretes, Angela chama a atenção para a relação entre o conteúdo negro de Mário e a criação ensaística e literária dele. “Mário de Andrade era um homem preto na elite intelectual branca brasileira. Desse modo, o olhar dele passa pela experiência de ser preto em um continente que tem divisão racial.”

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