Degradação oceânica e seus impactos em comunidades pesqueiras

Pescadores sofrem os impactos das mudanças climáticas, da contaminação das águas e de políticas públicas ineficientes

Imagem: Diogo Paiva

Por Ana Beatriz, Amanda Marangoni, Brenda Fernandes, José Vieira e Diogo Paiva

Praticada ao longo de todo o litoral brasileiro, a pesca, uma das mais antigas atividades econômicas e sociais, é diretamente afetada pelas mudanças climáticas, sobrepesca e poluição — fatores que não parecem vislumbrar melhora. Com o crescente aumento da temperatura global, a incessante poluição marítima e a pesca desenfreada, é inevitável que os mares, oceanos e rios, bem como a população geral, encontrem cada vez mais dificuldades na manutenção do seu modo de vida.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), no Brasil, cerca de 3,5 milhões de pessoas dependem direta ou indiretamente da atividade pesqueira, o que faz do país a 26ª nação no ranking mundial de pesca. A atividade realizada de forma artesanal é feita pessoalmente por um pescador profissional e, muitas vezes, é associada a um exercício familiar. Por fim, quando desempenhada em caráter de subsistência, a pesca tem o fito de escambo, podendo haver a troca de materiais ou  alimentos entre si. A atividade pode ainda ser de consumo doméstico, sem fins lucrativos.  

O impacto do colapso climático 

De modo geral, a pesca vem sendo ameaçada pelas práticas predatórias, quando de forma desenfreada e insustentável, mas também pelas mudanças climáticas e a poluição. Segundo uma pesquisa publicada pela revista científica Advances in Atmospheric Sciences, 90% do calor acumulado na atmosfera terrestre pelos gases do efeito estufa é incorporado nos oceanos. 

Patrícia Pinho, especialista em Ecologia Humana. Imagem:  Reprodução

Conforme afirma Patricia Pinho, doutora em Ecologia Humana pela Universidade da Califórnia e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o aumento da temperatura marinha implica na redução de oxigênio dissolvido nas águas: “A gente tem muitos peixes não só morrendo por pesca, mas também por situações de hipóxia”. Em consequência, muitos organismos aquáticos têm se retirado para águas mais frias, mudando seu padrão de distribuição, ou seja, a saída destes seres não tem sido compensada com a chegada de novos. 

Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano, expõe a importância dos ecossistemas marinhos para a manutenção da vida e suas interações com diferentes ambientes naturais. Um dos aspectos citados é a redução do efeito estufa, uma vez que parte do carbono liberado na atmosfera é absorvido pelo oceano. “O oceano também é fonte de alimento e de atividades econômicas e de recreação que são muito importantes para a sociedade”, explica Turra. “Além disso, o oceano produz metade do oxigênio que está disponível para nós respirarmos”.

As mudanças climáticas — transformações que afetam a temperatura e o clima do planeta e, nos últimos tempos, têm como principal agravador a atividade humana — também apresentam

Alexander Turra destaca importância dos ecossistemas marinhos. Imagem: Reprodução/IO-USP

impacto sobre a saúde dos oceanos. Para se ter um parâmetro, desde a segunda metade do século 19, a temperatura média do planeta subiu 1,1 grau. No melhor dos cenários, acredita-se que, nas próximas duas décadas, o termômetro alcance 1,5 grau de aquecimento. 

Diante desses dados, é preciso entender como eles afetam a relação com o ecossistema marinho. Os oceanos absorvem, de fato, parte do carbono presente na atmosfera e auxiliam o controle de temperatura; mas essa interação não é isenta de consequências. “Temos um fator extremamente claro, que é o aquecimento da atmosfera, que então aquece a água do mar”, explica Turra. 

“Ao fazê-lo, uma água mais aquecida acaba evaporando mais, e com isso são intensificados os fenômenos que estão associados à umidade e que são especialmente os eventos extremos, como tempestades e furacões”, continua o professor. Essa problemática merece ainda mais atenção pelo fato de o Brasil ocupar o quarto lugar no ranking mundial de emissões de gases poluentes. O estudo, feito pelo site britânico Carbon Brief, levou em conta dados de 1850 a 2021 e considerou a queima de combustível fóssil, mudanças no uso do solo, produção de cimento e desmatamento. 

Outro fenômeno citado pelo professor — também decorrente do aumento da temperatura da atmosfera e, logo, dos oceanos —, foi o derretimento das calotas polares e das geleiras, que resulta na expansão da água do mar. A partir disso, ocorre a elevação do nível dos oceanos, que possibilita que as águas marinhas invadam áreas de ocupações humanas.

“Muitos problemas relacionados a essa questão estão associados ao estreitamento dos ambientes da linha de costa, como praias e manguezais, que ficam presos entre a elevação do nível do mar e uma ocupação humana”, afirma Turra. “Tal fator os impede de migrar para dentro do continente. E com isso há riscos de perder as praias e os manguezais, assim como todos os serviços que eles prestam para a humanidade.” 

O impacto humano para além do clima 

Mesmo com tamanha importância para a manutenção do equilíbrio do planeta, os oceanos, para além das consequências atmosféricas, também sofrem diretamente nas mãos das ações humanas. Para que consigam lidar com o excesso de carbono presente nessa equação, os ecossistemas marinhos devem apresentar condições saudáveis — que são ameaçadas pela poluição. 

“É importante entender que quando falamos de poluição, falamos de esgoto orgânico, de lixo, de efluentes industriais, fertilizantes e agrotóxicos, vazamento de óleo. Falamos de uma gama variada de fenômenos de processos e de consequências. Esse é um dos grandes fatores que reduzem a saúde dos oceanos”, explica o professor. 

Outra fonte de riscos é caracterizada pela pesca excessiva, ou predatória. A atividade pesqueira, quando exercida de forma desenfreada, carrega consigo várias consequências. Uma delas é diminuir a quantidade dos organismos alvejados, “colapsando a própria atividade”. Segundo Turra, “algumas atividades de pesca, como arrasto de camarão, têm consequências adicionais, pois são uma arte de pesca não-seletiva.” 

“Além do próprio camarão, nesse caso, a prática captura uma série de outros organismos, normalmente juvenis, tendo um impacto na recuperação de estoques específicos”, diz o professor. “E além disso, o arrasto de camarão afeta o fundo do mar, comprometendo o alimento dos peixes, que poderiam crescer e virar pescado depois”. 

Pescadores sentem o impacto 

É inevitável que as mudanças climáticas e a degradação dos oceanos influencie negativamente as comunidades pesqueiras. Seja através da elevação dos níveis do mar e do aumento de desastres naturais, que forçam os habitantes da costa a deixarem a região ou pela ausência de pescado. “Com as mudanças do clima, pensando no pescado, há um fenômeno chamado migração da biodiversidade para os polos, que é o deslocamento dos estoques pesqueiros; e os pescadores não se deslocam da mesma forma”, diz Turra. “Então, havia ali um determinado organismo para pescar, que não está mais presente”.

“Há vários exemplos na Europa em que já há registros de imigração de estoques pesqueiros, porque eles monitoram esse movimento detalhadamente. E no Brasil, existe um fenômeno que é o desaparecimento da sardinha da região Sudeste, que tem sido capturada na região Sul”, ressalta o professor. “Ainda não temos um entendimento consolidado sobre isso, mas pode ser uma representação do  efeito das mudanças climáticas sobre esse estoque”.

Imagem: Acervo Pessoal

A ideia do desaparecimento de espécies, na prática, também é mencionada por Evaldo Marques Fortunato  Pereira, pescador de 48 anos da comunidade tradicional da praia do Araçá (São Sebastião – SP) e reconhecido como Mestre da Cultura Popular pelo Ministério da Cultura (MinC). Ele acredita que a má gestão governamental em relação ao tratamento de esgoto e a coleta seletiva também são questões que aprofundam a má situação enfrentada pelo ecossistema aquático. “Continuam impactando de forma descontrolada o mar e os manguezais, a ponto dos peixes se afastarem para mais longe, fugindo da poluição”, diz Pereira, cuja família veio de Recife em 1890 e por gerações atuou na pesca. “Isso faz com que tenhamos prejuízo, pois precisamos ir cada vez mais longe da comunidade para buscar nosso sustento”. 

A ineficiência das leis e políticas vigentes 

Pereira também critica a desvalorização da pesca pelo sistema. O profissional afirma que o esforço empenhado por pescadores não é considerado quando a discussão entra em pautas mercantis. “Os compradores não querem pagar o valor certo pois dizem ter medo de estar comprando pescado contaminado pelo lixo e o esgoto existente no mar”, discute. “A legislação ambiental vigente deixa muito a desejar”.

Em partes, a última afirmação de Pereira não deixa de ser verdade. Apesar de existirem regulamentações que focam na proteção do ecossistema aquático, a execução de tais medidas é deixada de lado por representantes do Governo. Assim, a legislação acaba invisibilizada pela população e, como consequência, é desconsiderada por aqueles que se envolvem com o trabalho marinho.

O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), por exemplo, foi instituído em 2016 pelo Governo Federal e tem o intuito de promover a redução da vulnerabilidade nacional à mudança do clima. Mesmo que entrelaçado com as propostas do Acordo de Paris, tratado mundial assinado no mesmo ano que pretende combater o aquecimento global, ainda existem colunas em branco ao trazer as indicações do Plano ao debate. “Temos políticas, mas elas não estão necessariamente sendo colocadas em prática, em especial pelo Governo Federal, que tem na agenda climática um foco de negacionista”, aponta Turra.

“O Brasil tem um potencial muito grande de transformações de energia para uma energia renovável e limpa, especialmente utilizando fontes oceânicas. O grande problema é a questão de implementação dessas ações, que precisam ser estruturantes, longevas e ser tratadas como políticas de Estado, e isso não tem acontecido no âmbito Federal”, continua o professor. 

O ônus social

O desleixo em relação a aplicação dessas leis faz com que as comunidades pesqueiras carreguem parte da culpa pela poluição aquática. “Defendem os empreendimentos, que causam os maiores danos ambientais, e deixam a culpa da falta ou desaparecimento de dezenas de espécies marinhas, nas costas das comunidades tradicionais”, lamenta Pereira. “É muito fácil culparem a pesca e quem vive dela, do que brecar o crescimento desordenado industrial que usa rios como fonte de descarte”.

Ao dirigir a culpa para as camadas mais pobres da sociedade, a discussão sobre crises climáticas e poluição de ecossistemas atinge problemáticas sociais que envolvem a desigualdade socioeconômica, étnica, racial e de gênero enfrentada pelo Brasil. De acordo com Patricia, o Brasil é uma nação vulnerável por conta de sua extensão costeira, que alcança mais de 8.500 quilômetros. Assim, a nação é mais propensa ao aumento do nível do mar e das temperaturas, variáveis relacionadas ao aquecimento global. “Tais fatores agravam os impactos das mudanças climáticas que se reproduzem no País através de eventos extremos como inundações, deslizamentos, enchentes e grandes secas e episódios de fome”, diz.

A força vital dos oceanos esvaece conforme suas enfermidades avançam. “O oceano está doente porque a sociedade está doente. À medida que se torna mais debilitado, ele acaba perdendo a sua capacidade de trazer benefícios”, diz Turra. O professor continua, ao afirmar que “boa parte dos problemas presentes no oceano estão associados à pobreza e à má qualidade de vida”. 

Há diversos exemplos evidentes, como a fragilização das políticas de licenciamento ambiental e a intensificação do uso de agrotóxicos no Brasil — vale ressaltar que, nos últimos quatro anos, o uso de 1.550 químicos em atividades agrícolas foram concedidos pelo atual governo —, fatores que tornam mais árduo o caminho a ser percorrido até a sustentabilidade. Turra afirma: “Precisamos fazer um movimento convergente, sinérgico e sistêmico para que consigamos, de forma coerente, canalizar nossos esforços e recursos a fim de seguir na busca desse norte, que é o desenvolvimento sustentável.”

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*