A Infância na Cracolândia

Segundo pesquisadora da USP, inserção em contextos violentos e com drogas afeta desenvolvimento da identidade de crianças

Muro no bairro do Bom Retiro, em São Paulo - Foto: Ana Júlia Maciel

Por Ana Júlia Maciel, Gabriel Gama, Julia Custódio, Lorraine Moreira e Rebeca Fonseca

Doze anos. Essa era a idade da garota resgatada por Joana nas ruas da Cracolândia. Sem estrutura familiar, a menina se prostituía no centro de São Paulo. Todos aqueles machucados, no corpo ainda infantil da garota, “valiam” R$ 2. Dois reais por ato. Joana a levou para tomar banho. Ao sair do banheiro, ouviu os berros da criança, que depois a questionou: “Onde Jesus estava quando isso aconteceu comigo?”.

Banheiro destinado ao uso infantil em ONG no centro de São Paulo – Foto: Ana Júlia Maciel

O relato é de Joana Gabriela, idealizadora e criadora do Instituto Sonhe!, que ajuda crianças na região da Cracolândia, em São Paulo. Nessa época, ela trabalhava na ação chamada “Cristolândia” e conta que esse episódio motivou a criação da sua própria ONG.

Cenas como essa se repetem diariamente nas redondezas da rua Helvétia. O local, geograficamente impreciso e pejorativamente denominado Cracolândia, é o abrigo de centenas de pessoas em situação de vulnerabilidade social. O levantamento populacional mais recente é de 2019 e foi feito pela Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele aponta que 1.680 pessoas habitam o espaço.

Os dados sobre o perfil e a quantidade de crianças são defasados. Segundo levantamento feito pela assistência social em 2017, 30 crianças ficam ao redor da Praça Princesa Isabel. Porém, no instituto coordenado por Joana, mais de 900 crianças moradoras da região estão matriculadas.

O perfil majoritário da população geral é de homens, negros ou pardos, na faixa dos 35 anos. O difícil acesso à moradia e à alimentação e o abandono familiar são fatores que os motivam a frequentar a região, além da disponibilidade de drogas. Os bairros da Luz e da Santa Ifigênia, no entanto, não são só o crack, mas o estigma impede que eles possam ser vistos para além disso e acoberta os demais problemas sociais que se desenvolvem no local.

A droga foi lançada às ruas paulistas em 1989. Primeiro, fez dependentes na zona leste e depois, na década de 1990, espalhou-se no centro. Antes disso, o entorno da região central era conhecido como Boca do Lixo, um famoso reduto de prostituição e jogos, abrigo de camadas marginalizadas da sociedade e, o que poucos sabem, um polo de produção do Cinema Marginal. 

Desde o início, o espaço, abandonado pelo poder público, era visto como perigoso pelas atividades ilegais e havia preconceito com as pessoas que ali circulavam. A decadência da região tem relação com o declínio da produção cinematográfica, mas, também, com a falta de políticas públicas para o local. Fluxos de pessoas e comércio, furtos e a circulação de drogas cresceram descontroladamente no fim da década de 1980 e aumentaram progressivamente até os dias atuais. 

Vista do centro de São Paulo, no Bom Retiro – Foto: Ana Júlia Maciel

A violência policial e as ações higienistas são a regra hoje na Cracolândia. A assistência aos moradores do local se confunde com a limpeza pública dos espaços através da expulsão dos que vivem naquele meio.

O esforço de Joana passa também por vencer os preconceitos que recaem sobre o local e mostrar que na região habitam histórias, valores e pessoas, especialmente, crianças, que não podem ser abandonadas. 

Influências do ambiente e preconceitos no desenvolvimento das crianças e adolescentes

O ambiente adequado para o desenvolvimento de crianças e adolescentes é aquele em que os indivíduos têm acesso à moradia, saúde física e mental, educação, integridade física e alimentação. Direitos básicos. No entanto, jovens em situação de vulnerabilidade, como usuários ou filhos de usuários de drogas, podem estar inseridos em ambientes violentos e sujeitos aos olhares preconceituosos da sociedade.

Em seu mestrado na USP de Ribeirão Preto, Júlia Corrêa Gomes estudou o cuidado institucional a crianças e adolescentes usuários de drogas. A psicóloga observou o ambiente em que esses jovens estão inseridos e os impactos psicossociais causados a esses indivíduos. 

Vistas como “um perigo” para as pessoas, as crianças inseridas no contexto das drogas e violência não possuem uma rede de apoio que as permita vivenciar a infância. “Uma das principais observações foi, justamente, a construção da identidade. Muitas vezes, com o uso de drogas, existe um fenômeno que é descrito como afunilamento da identidade. Então, essa criança ou adolescente vive com rótulos e é reduzida a um usuário de drogas ou é vista como o ‘menino que mora na Cracolândia’. Um olhar enviesado sobre a pobreza e a situação do indivíduo”, explica Corrêa. A exclusão social e a estigmatização corroem a autoestima dos jovens em torno de uma imagem de violência, o que leva a um ciclo vicioso.

Além do preconceito afetar a imagem pessoal dessas crianças, também dificulta o trabalho feito dentro das unidades de acolhimento: eles chegam desconfiados e na defensiva, dado que grande parte de suas experiências foram violentas. Por exemplo, a escola, que deveria atuar como rede de apoio a esses indivíduos, também é  segregadora. Há a possibilidade das crianças e adolescentes sofrerem bullying e os profissionais da educação podem não estar aptos a lidar com as necessidades desses alunos. 

A raiva e agressividade provocadas pela baixa autoestima e violência sofridas são descritas pela pesquisadora como sofrimento social. “É um sofrimento mental daquele indivíduo, e que vários outros indivíduos sentem em uma mesma situação. É sentido coletivamente. Essas crianças e adolescentes muitas vezes não vão demonstrar tristeza, porque eles estão acostumados com uma certa violência institucional e da sociedade. Não é o choro que vem primeiro, vai vir uma agressividade, um ataque, uma raiva que eles mesmos às vezes não conseguem entender”. 

O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Os direitos das crianças e adolescentes moradoras da Cracolândia são violados diariamente. Uma pesquisa levantada pela Visão Mundial constatou que 29% dos jovens consomem restos de comidas encontrados nas ruas, por exemplo, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) exija o acesso à alimentação adequada e saudável para esse público. O estudo ainda mostrou que 37% dos que possuíam entre 7 e 11 anos sofreram algum tipo de violência - ato que infringe o Artigo 5° do Estatuto, dado que nenhuma criança ou adolescente deve ser vítima de agressão.

O Artigo 19 do ECA assegura ao jovem o direito à moradia em um ambiente que garanta o desenvolvimento integral dele. No entanto, o ambiente hostil do local não permite, na prática, que isso aconteça. Outras garantias previstas na lei são desrespeitadas: o trabalho infantil e o contato precoce com as drogas ocorrem. Além disso, a maioria das crianças não frequentam as escolas.

Livros e brinquedos usados para garantir o direito à educação no Instituto Sonhe! no Bom Retiro – Foto: Ana Júlia Maciel

Instituto Sonhe!

Criado em 2010, o Instituto Sonhe! surgiu com a missão de oferecer oportunidades para o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes na região da Cracolândia, por meio de atividades de formação e capacitação.

Joana, que além de presidente e idealizadora do Instituto é enfermeira por formação e professora de balé, explica que todas as crianças precisam frequentar escolas para se matricularem no Instituto.

Durante a semana, são oferecidas duas aulas por dia, que incluem desde alfabetização, inglês, arte e musicalização, até ballet, judô, jiu-jitsu, handebol, vôlei e futebol. O Instituto recebe, em média, 80 crianças diariamente — aos sábados, 150 crianças são atendidas e há uma lista de espera para atender a demanda. No total, 949 crianças estão cadastradas.

“A educação da região é muito escassa, quando ocorre operação policial não tem aula nas escolas”, diz Joana. Segundo ela, 70% das crianças atendidas são bolivianas, vindas principalmente da região do Bom Retiro.

Antigo estacionamento, a quadra do Instituto recebe as aulas de esportes e já abrigou ceia de Natal para 600 pessoas – Foto: Ana Júlia Maciel

Filha de ex-usuários de drogas, ela conta que a motivação para começar o projeto aos 21 anos de idade enfrentou dificuldades com recursos e financiamento. “O que sabia fazer era conectar as pessoas e convencê-las, até que todas as pessoas se tornaram voluntárias no Instituto.”

“Não dou apenas aula de balé, dou aula profissional de balé clássico. Nosso trabalho é de formação e capacitação, não de recreação”, diz Joana. Algumas de suas alunas alcançam o nível mais alto de avaliação da Royal e competem em provas de alto nível.

Parte da sala de balé do Instituto – Foto: Ana Júlia Maciel

“Tenho crianças de 12 anos analfabetas funcionais, sem comida e roupa. O que equipara esses jovens a outras crianças privilegiadas? É a força de vontade de vencer. Sempre ensino para as bailarinas do Instituto que elas vão vencer: avancem, vai dar certo.”

Ela relata que arrecadou 2 mil cobertores em um único dia para fornecer às crianças durante a onda de frio extremo que atingiu São Paulo: “Se não cuidar dessa criança agora, ela vai roubar amanhã para sobreviver. Meu sonho é hoje, se eu trabalhar ele vou conseguir atingir daqui a dez anos.”

“Sou fruto disso, de usuários, lutei para criar o Instituto. Se todos puderem fazer um pouquinho, conseguiremos muito mais.”

Mesmo que as ações da sociedade civil apresentem resultados positivos, essa não é uma função exclusiva das ONGs. O responsável pela saúde e bem-estar de todos os indivíduos, inclusive das crianças, é o Estado. Ainda que o Instituto Sonhe! e outros gerem impacto na vida de centenas de crianças, as políticas municipais, estaduais e federais, para cuidar deste cenário, são deficitárias. A situação de insalubridade e a perda da infância são fruto de um desgoverno em diversas instâncias políticas.

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