Violência de gênero na América Latina cresce em meio à covid-19

Durante a pandemia, pautas feministas estão sendo retiradas do jogo político da região, tendo como consequência o aumento da violência domestica e casos de feminicídios

(Imagem: Fotos públicas)

De acordo com relatório do Banco Mundial, o Brasil registrou nos primeiros dois meses da pandemia, março e abril de 2020, um aumento de 22% nos casos de feminicídio e de 27% nas denúncias recebidas pela linha nacional de atendimento à Violência contra a Mulher, em relação ao mesmo período de 2019. No entanto, o crescimento da violência contra a mulher não aconteceu só no âmbito nacional. Países como Colômbia, Chile, Bolívia, México, El Salvador, Honduras e outras regiões que compõem a América Latina, tiveram aumentos expressivos de feminicídios e violência doméstica. Fora de um cenário pandêmico, a ONU Mulheres declarou, em 2017, que a América Latina é o lugar mais violento para mulheres, e conforme dados como os do Banco Mundial, a situação tende a piorar. 

Um exemplo recente do aumento da violência é o decreto de Estado de emergência contra a violência de gênero de Porto Rico, em plena covid-19. Mulheres e meninas estão tendo que conviver em isolamento social com seus agressores, o que as tornam mais propensas a abusos e exploração sexual. 

A doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Gênero e História da USP, Júlia Glaciela da Silva Oliveira, explica que esse contexto de pandemia ocasionou a sobrecarga de mulheres no trabalho doméstico, e esse fator corrobora para o aumento das violências sofridas por elas. 

Ela enfatiza “uma das bandeiras do movimento feminista dos anos 60 e 70, era a divisão social do trabalho doméstico. Mas essa ainda não foi concretizada e a pandemia só escancara tal situação. Esse momento exprime essa necessidade de divisão de tarefas, devendo vir como uma pauta política”.  

Porém, o que se tem visto durante a covid-19 é a retirada de pautas do movimento feminista do jogo político na América Latina.  Como consequência dessa retirada, tem-se o aumento explosivo das diversas violências: “O que se mostra mais um agravante é que muitas mulheres que sofrem a violência, não a reconhecem como tal”, comenta a doutoranda. 

Júlia Glaciela explica que isso acontece porque as mulheres estão inseridas em uma América altamente patriarcal e heterogênea. Junta-se a esse fenômeno, o aumento da desinformação e do negacionismo da violência contra a mulher. “Existe na América Latina um movimento de encorajamento para que as mulheres não lutem pelos seus direitos e não se vejam como vítimas em situações de violência. Não é porque conquistamos direitos que eles estão garantidos”, explica. Oliveira ainda afirma que as mulheres estão vivendo em um momento de tentativa de deslegitimar e desestabilizar os seus direitos, inclusive o de protegerem suas vidas. 

O crescimento do discurso antigênero na América Latina, que visa defender um ideal de família tradicional, tem questionado os direitos das mulheres e da comunidade LGBQIA+. Tais discursos – presentes constantemente em políticas governamentais defendidas inclusive pelo Presidente Jair Bolsonaro –   faz o Brasil liderar os assassinatos de pessoas trans no mundo, segundo o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

“O termo ‘violência de gênero’ designa uma violência que acontece, especificamente, com uma pessoa por conta do seu gênero. Isso é uma violência que acontece contra as mulheres por terem um corpo feminino. Quando falamos dessa violência, também podemos incluir a homofobia, porque é também o reconhecimento de uma violência devido a sexualidade, então a comunidade LGBTQIA+ entra como vítima desse tipo de violência”, explica Júlia Glaciela acerca do recorte da violência de gênero envolvendo mulheres e também a comunidade LGBTQIA+ durante a covid-19.

É importante pensar que quando se fala da violência de gênero contra a mulher na América Latina, tem que se pensar também no recorte de raça, classe e etnia. Refletir sobre como essas mulheres saíram das situações de violência, levando em consideração tais aspectos, é um ponto essencial na pandemia. “Porque houve um agravamento muito grande na carga de trabalho dessas mulheres latino americanas dentro das suas casas”, explica Oliveira.

No relatório “A pandemia da COVID-19 gerou um retrocesso de mais de uma década nos níveis de participação no mercado de trabalho das mulheres na região”, a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) analisa que em um cenário pós pandemia, as mulheres serão as mais prejudicadas no mercado de trabalho. 

Analisando tal relatório e refletindo sobre a violência de gênero, Júlia Glaciela argumenta que a pandemia vai afetar mulheres e meninas da América Latina, principalmente, as das camadas mais pobres, que estão deixando as escolas para trabalharem: “muitas mulheres negras que trabalham em ambiente doméstico estão perdendo seus empregos e entrando na informalidade. E essa perda de autonomia das mulheres, ocasionada pela perda de seus empregos, as condicionam às margens da sociedade e as tornam mais propensas à violência de gênero na América Latina”. 

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