Brasil vive fase de desmonte na saúde do trabalhador, aponta pesquisa

Fim do Ministério do Trabalho e mudanças na legislação trabalhista estariam entre as principais causas

Trabalhadores do ramo de construção estão entre profissões com risco de acidentes [Foto: Arquivo Agência Brasil]

O mercado de trabalho no Brasil vem passando por diversas transformações. Desde o ponto de vista mais prático, como a ampliação do trabalho autônomo, até o político, como com a extinção do Ministério do Trabalho, as mudanças estimularam novos estudos a respeito das condições de trabalho do brasileiro. Um deles foi desenvolvido na Faculdade de Medicina da USP e analisou esse contexto sob a perspectiva da saúde do trabalhador ao longo dos anos.

A pesquisa “Construção da Intersetorialidade no Campo Saúde e Trabalho: Perspectiva dos Profissionais Inseridos na Rede de Serviços do Município de São Paulo” foi baseada nas percepções “de trabalhadores que estão na linha de frente em serviços de saúde mental ou atenção básica, tentando entender o trabalho deles, as dificuldades de realizá-lo e os impasses”, de acordo com Selma Lancman, coordenadora dos estudos e professora no Departamento de Terapia Ocupacional da USP.

As atividades foram desenvolvidas em dois eixos. O primeiro contou com grupos de reflexão sobre trabalho com profissionais ligados diretamente ao setor de saúde do trabalhador no Brasil, que incluiu fiscais empregados pelo Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho e Secretaria Municipal do Trabalho.

Além disso, com estudos de perspectiva histórica sobre o tema, a linha de pesquisa analisou as condições sob as quais as políticas de saúde e trabalho estiveram conectadas pela intersetorialidade no Brasil.

O conceito de intersetorialidade é a base para a integração entre os campos de saúde e trabalho. Temas como organização, regulamentação e até precarização do trabalho devem ser discutidos a partir dessa visão. “É impossível pensar na política saúde-trabalho sem contemplar a garantia de boas condições de trabalho, da saúde no trabalho e da legislação que vai regularizar tudo isso. As políticas são intersetoriais”, afirma Selma.

Esse é um debate antigo não só em nosso País como também no mundo, remetendo principalmente à época da Revolução Industrial, em que tornou-se relevante discutir a respeito das condições sanitárias dos trabalhadores. No Brasil, o tema ganhou uma expressão ainda maior em fins da década de 1980, com a nova Constituição e com o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS), ambos em 1988. 

Porém, os estudos da FMUSP demonstraram uma forte mudança nos últimos anos no que diz respeito à atenção em relação à saúde do trabalhador. “Aquilo que era para entender o desenvolvimento das políticas acabou sendo um estudo dos desmanches dessas políticas”, analisa Selma. Desta forma, a professora enxerga que um maior engajamento da intersetorialidade saúde-trabalho seria importante para resistir a esses desmanches nas políticas de Saúde do Trabalhador.

Os exemplos são recentes. Especialistas indicam que as mudanças vieram principalmente dos últimos dois presidentes do Brasil – Michel Temer e Jair Bolsonaro. “Já durante o governo Temer, começou a acontecer uma série de reformas da legislação trabalhista e um esvaziamento de tudo quanto era política de saúde e segurança do trabalho”, aponta Selma.

Nesse contexto, as principais medidas apontadas foram a extinção do Ministério do Trabalho – que se transformou em uma secretaria especial no Ministério da Economia – e da Previdência Social. “Ao longo dos anos se construiu uma série de normas regulamentadoras para assegurar que o trabalho não possa ser prejudicial à saúde. E tudo isso foi sendo desmontado. O que sobrou é trabalhado de uma forma isolada, fragmentada, empobrecida, sem recursos para atuar. Falta profissional, transporte para ir nas empresas, respaldo legal, e jurídico”. Com o desmanche, a pesquisa mostrou que a reposição de funcionários aposentados da área intersetorial tornou-se sucessivamente mais escassa.

Outro obstáculo à saúde do trabalhador apontado por especialistas veio à tona em 2019. Naquele ano, o governo de Jair Bolsonaro alterou diversas Normas Regulamentadoras (NR), que são disposições responsáveis por manter diretrizes do ambiente de trabalho. Uma mudança na NR-3, por exemplo, limitou a possibilidade de o Estado agir antes que algum acidente ou adoecimento ocorra. A justificativa do presidente foi a de “simplificar as regras e melhorar a produtividade”.

Também ficou constatado que, ao longo dos anos, muitos foram os entraves para a implementação desta prática na área das políticas públicas. “A política de saúde e trabalho e de vigilância e saúde do trabalhador são intersetoriais. Elas partem da ideia de que o trabalho envolve vários setores, mas a prática de cada um desses setores, elas não são intersetoriais, porque não se investiu nisso”, afirma.

Diante de um cenário de extinção do Ministério do Trabalho – órgão que tinha o poder de garantir em certas medidas a saúde do trabalhador – e flexibilização das leis trabalhistas, o resultado se resume à ausência de políticas únicas de atenção ao trabalhador, que terá dificuldade em encontrar respaldo legal quando as suas condições de trabalho não forem ideais.

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