Moda de viola mobiliza elementos que sintetizam a história e a experiência da cultura caipira

Em “O mineiro e o italiano”, moda gravada por Tião Carreiro e Pardinho, lição de moral e conteúdo épico são transmitidos por meio do humor

“Características, valores, processos históricos e experiências inerentes à cultura caipira e à Paulistânia são colocados em evidência na moda de viola” (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

O sociólogo Carlos Alberto Dória define a Paulistânia como “o vasto território de ocupação original bandeirante onde se formou uma sociedade bastante distinta das demais áreas de ocupação do Brasil”. É dessa sociedade que emerge a figura representativa de sua cultura: o caipira. 

Retratado em diversas narrativas de filmes, romances, contos, telenovelas e mesmo em músicas, a compreensão desse personagem é ponto importante para a dissertação “A Paulistânia, o mineiro, o italiano: processo histórico, acesso à terra e cultura caipira numa moda de viola”, apresentada por Thiago Righi Campos de Castro em março de 2020, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. 

O primeiro contato do pesquisador com o gênero veio na infância, nos períodos de férias escolares passados na casa dos avós no interior de São Paulo. “Foi nesse tempo – imerso em um ambiente em que todos os ritos, costumes, relações sociais, cotidiano, alimentação, símbolos e crenças eram os da cultura caipira – que eu tive contato especialmente com a música caipira, a moda de viola”, recorda. 

O núcleo da pesquisa de Castro constitui-se especificamente no fonograma “O mineiro e o italiano”, composição de Teddy Vieira e Nelson Gomes gravada em 1964 pela já referida dupla Tião Carreiro e Pardinho. A escolha vem após o contato do pesquisador, já adulto, com a canção, ao ser “arrebatado pelo humor fino e sagaz – característico da cultura caipira – que a letra dessa moda de viola apresentava como desfecho da história por ela contada”. 

“Comecei, paulatinamente, a perceber outras camadas narrativas e um potencial sugestivo imenso que a letra da canção tinha, percebendo lugares comuns, um humor característico, personagens que encarnavam ‘tipos-ideias’, menções e referências culturais, históricas, geográficas e outras sugestões que a narrativa da letra trazia em seu bojo”, ele conta. 

Aos poucos, foi descobrindo o que ele chama de “potencial evocativo” que estava escondido na canção. A riqueza da obra, segundo ele, não está na letra ou na interpretação; na narrativa poética ou na narrativa musical; mas, sim, no diálogo entre os elementos formais do texto e da música, nas interseções da melodia com a prosódia, no sentido produzido por essas interseções, na completude de uma coisa na outra. 

Analisando a canção “O mineiro e o italiano”

O fonograma “O mineiro e o italiano” se destaca no repertório de Tião Carreiro e Pardinho na medida em que, ao ser submetido a uma análise crítico-interpretativa em que a estrutura interna da canção é confrontada com o andamento do período histórico, apresenta um interessante poder de síntese. Características, valores, processos históricos e experiências inerentes à cultura caipira e à Paulistânia são colocados em evidência ou ainda sugeridos na canção. 

A trama de “O mineiro e o italiano” tem como plano de fundo uma demanda de terra, disputada pelos personagens, o mineiro e o italiano. “Ambientada em uma paisagem predominantemente rural, sua narrativa conta uma história concebida a partir de apresentação cronológica dos fatos e ações que a constituem. Além disso, lança mão de personagens-tipo que podem ser facilmente associados ao passado e à formação do Brasil – especialmente da região Centro-Oeste-Sul”, explica o pesquisador. 

A disputa de terra, de que trata a narrativa, entre mineiro e italiano vai a tribunal. O mineiro propõe ao seu advogado que “fale pro juiz pra ter dó” dele e, caso o juiz interviesse em seu favor, lhe daria uma leitoa de presente. O advogado aconselhador repreende seu cliente, alertando que o juiz quatrocentão “é uma fera, caboclo sério e de tutano”. 

Chega-se ao veredicto inesperado: “o mineiro ganhou a demanda” e depois confidencia ao advogado que fez “conforme lhe havia dito”:

“[…]

Peguei uma leitoa gorda, foi Deus do céu me deu esse plano

De uma cidade vizinha para o juiz eu fui despachando

Só não mandei no meu nome, mandei no do italiano”. 

O risível como receptáculo das verdades enraizadas e estruturais

“A corrupção no horizonte das (im)possibilidades, a astúcia como alternativa à subversão da ordem e garantia da sobrevivência”, explica Castro sobre a conclusão da narrativa analisada. “Composta a partir de elementos aparentemente simples, ‘O mineiro e o italiano’ expõe uma sociedade na qual os limites entre o público e o privado não estão claramente estabelecidos nem firmados, e em que o arcaico e o moderno convivem na mesma paisagem”.

Como se vê, o humor é característica fundamental da cultura e da música dos caipiras. Castro explica que, nessa canção, é por meio da piada que a lição de moral e o conteúdo épico – também primordiais na moda de viola e na cultura caipira – são transmitidos ao ouvinte-leitor. 

O pesquisador conclui afirmando que esse humor é, na maioria das vezes, onde as verdades mais enraizadas e estruturais se encontram. “O potencial estético, o poder emancipatório, a graça e o humor dessa moda de viola estão, portanto, e também, tanto no improvável resultado da demanda e na suspensão do lugar-comum, quanto na subversão da ordem que ela nos anuncia ao seu final.”

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