Apesar de quatro planos de intervenção urbana, Luz não mudou

O Projeto Nova Luz foi a última e também fracassada tentativa de revitalizar o centro velho de São Paulo

Foto: Eduardo Ogata/SECOM

Em meados do século XIX, a região da Luz tornou-se a coqueluche da elite paulista. Essa fase ficou para traz. A Luz, já há algumas décadas, é sinônimo de abandono: dependentes químicos perambulando, cortiços e sujeira. Tentativas de intervenção não faltaram; todas, contudo, fracassaram. Pesquisa feita por Marcelo Ricardo Fernandes que resultou em uma dissertação de mestrado apresentada na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) trata exatamente disso: a sucessão de intervenções malsucedidas na região da Luz. Na dissertação de título “A Concessão Urbanística e os seus instrumentos: um estudo de caso do Programa Nova Luz”, Fernandes analisa a sequência de projetos de intervenção urbana, iniciada em 1972, propostos para a região da Luz. Em especial, o último projeto, o Programa Nova Luz. 

Em 1972, um amplo plano de reurbanização do centro histórico foi encomendado pela prefeitura. Nele; à região da Luz, dedicou-se muita importância. O plano demandou sete anos de trabalho; foi arquivado, contudo, sem a realização de praticamente nada. Depois dessa tentativa, foram lançados mais três projetos de revitalização especificamente para a Luz. Todos colheram mais fracassos que vitórias. “A região da Luz tem sido alvo de projetos de intervenção urbana desde 1970, são 50 anos de políticas na região”, Fernandes completa. “Embora minha pesquisa foque no último plano, foi necessário discorrer sobre os projetos anteriores”.

Concessão urbanística 

O interesse de Fernandes pelo Nova Luz deve-se ao ineditismo do seu meio de implementação: a concessão urbana. O pesquisador explica: “Depois de inúmeros fracassos, aparece a figura da concessão urbanística. Que era uma coisa nova; na verdade, ainda é. Ela surge no arcabouço legal brasileiro no Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de SP em 2002. O foco da dissertação é a concessão. Quais eram os interesses? Quem eram os beneficiários? O caso brasileiro é uma adaptação de uma política inglesa que aconteceu em Liverpool, embora nenhum defensor do projeto cite o caso inglês”.

O declínio de Liverpool começa nos anos 1930. Em 1980, torna-se o símbolo da desindustrialização inglesa. Entre 1931 e 2001, Liverpool perdeu quase metade da sua população – de 846.101 para 441.900 pessoas. A cidade foi cobaia de uma forma inédita de intervenção urbana. Nesse modelo, o Estado abdica de inúmeras prerrogativas de ordenamento do espaço; transferindo ampla autonomia à iniciativa privada para a restruturação de áreas degradadas. Trata-se de uma espécie de privatização de espaços públicos. O distrito de Liverpool One passou pelo processo. Em 1999, a Grosvenor, uma imobiliária inglesa, ganhou o direito de reurbanizar uma área de 170.000 m² de Liverpool. Mediante o uso de instrumentos de gestão pública concedido a ela, a Grosvenor comprou toda a área de intervenção. Após as obras, Liverpool One converteu-se em um shopping a céu aberto. Com lojas, bares, hotéis, restaurantes e prédios residenciais. A privatização é tamanha que serviços reconhecidamente públicos como segurança, iluminação e limpeza são de responsabilidade da Grosvenor. 

Fernandes define o conceito de concessão urbanística usado em sua pesquisa: “É um instrumento de política urbana no qual o poder público concede uma área da cidade para um agente privado (empresa ou consórcio) por um prazo preestabelecido. O vencedor do processo licitatório deverá executar um conjunto de melhorias urbanas previamente estabelecidas e será remunerado através da exploração comercial da área concedida pelo período em que durar a concessão”.

A concessão urbanística do Projeto Nova Luz foi autorizada em 2009, Lei 14.918, na gestão Kassab. No ano seguinte, o consórcio de empresas vencedor do processo foi anunciado. Na mesma época, iniciou-se uma batalha judicial entre a prefeitura e instituições de defesa da sociedade civil. Questionou-se a ampla liberdade de desapropriação que a concessionária teria; com o uso, inclusive, de prerrogativas públicas como o direito de preempção. O projeto, também, foi acusado de higienista. Em 2013, já na gestão Haddad, o projeto foi arquivado.

Privatização do espaço público

Na dissertação, Fernandes não defende a total extinção do instrumento de concessão urbanística, mas seu uso democrático e em casos específicos. “A divergência central é que o instrumento não deveria ser aplicado em regiões como a Luz. Liverpool era muito diferente. A luz já era urbanizada, tinha metrô, edifícios; não precisava de grandes reformas. Houve a intenção higienista. Havia a intenção de mudar o perfil socioeconômico do morador do bairro. O motivo principal das divergências judiciais é a privatização do espaço público. A população foi excluída dos organismos de consulta. A prefeitura deu liberdade para o consórcio decidir o que deveria ser desapropriado. Esses entraves jurídicos frustraram o projeto”.

Construído multilateralmente, com a participação plena e efetiva de todos os estratos da sociedade, sem desprezar pequenos proprietários e os mais pobres; projetos de requalificação urbana baseados na concessão podem ter resultados positivos. Essa é a opinião de Fernandes, que completa: “A concessão pode ser útil ao dar agilidade ao Estado. Essencialmente em intervenções caras nas quais o Estado não tenha recursos. Uma coisa urgente. É possível observar uma função para o instrumento. Ele tem potencial, o problema são as pessoas que o gerenciam”.

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