Momento político reacende discussão sobre cura gay

O movimento LGBT tem ganhado espaço na sociedade, mas ainda falta ampliar as discussões sobre certas violências que passam. Imagem: Samantha Prado

Por Maria Laura López, Mariana Cotrim e Samantha Prado

O termo cura gay ganhou força no Brasil quando, em 2013, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, João Campos, aprovou um projeto de lei que interrompia a decisão do Conselho Federal de Psicologia (de 1999), sobre a proibição do tratamento de reversão de homossexuais. O episódio gerou grande movimentação em prol da minoria LGBT e a mídia passou a se referir à terapia como “cura gay”. Mesmo tendo ganhado mais atenção há poucos anos, esse tema não é, de forma alguma, recente. Trata-se de um conjunto de ideias e formações que envolve religião, sociedade, psicologia e cultura.

Vivemos em uma sociedade extremamente plural, não importa o quanto retrocessos conservadores tentem negar o fato. Embora certo número de indivíduos se encaixem no denominado padrão heteronormativo (identificam-se com seu sexo biológico e sentem atração unicamente pelo sexo oposto), muitos outros se entendem a partir de demais possibilidades, caracterizando uma valiosa diversidade. Querer que todos prendam-se às convenções impostas pela heteronormatividade é algo impossível. 

Tal diversidade envolve alguns conceitos de identidade de gênero, orientação sexual e sexo biológico que demandam ser esclarecidos para melhor compreensão. Sexo biológico diz respeito às distinções anatômicas e, a partir disso, classifica-se pessoas de sexo feminino, sexo masculino e interssexuais (casos raros de genitais ambíguos ou ausentes).

Já identidade de gênero é sobre a maneira como o indivíduo se percebe, independente de seu sexo biológico. Trata-se de uma experiência subjetiva da pessoa a respeito de si mesma. A identidade pode ser binária (homem ou mulher) ou não-binária (ao identificar-se com ambos ou com nenhum deles). Pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi dado ao nascer são chamadas de cisgênero, enquanto aquelas que não se identificam são transgênero e/ou transsexuais. 

O último conceito, que será debatido ao longo deste texto através da cura gay, é a orientação sexual. Ela diz respeito à atração sexual e afetiva e classifica as pessoas em: heterossexuais (atraídas pelo gênero oposto), homossexual (atraídas pelo mesmo gênero), bissexual (atraídas por ambos). Há também os pansexuais (atraídos por indivíduos sem distinção de gênero) e os assexuados (apenas romanticamente atraídos). 

O entendimento da minoria LGBT envolve todos esses conceitos e a cura gay tem seu foco no tratamento da orientação sexual. Imagem: Samantha Prado

Herança heteronormativa

A sexualidade é uma construção social que tem variações em diferentes culturas e, no mundo ocidental, está fortemente relacionada a uma hierarquia social na qual a heterossexualidade ocupa a posição superior. Dessa forma, além da homossexualidade ser socialmente vista como inferior, considera-se a heteressexualidade a forma “normal” de ser. Nesse ponto nasce a heteronormatividade: um conjunto de normas sociais compulsórias que orienta expectativas e obrigações sociais advindas do pressuposto da heteressoexualidade como natural. O estabelecimento desse padrão gera um controle de conduta, possibilitando que qualquer desvio seja considerado não natural, uma aberração o que reverbera de forma violenta no dia a dia da comunidade LGBT. 

Devido a isso, pessoas pertencentes a essa minoria estão sujeitas a uma ampla gama de violências e, dentre elas, encontra-se a chamada cura gay: uma terapia que promete reversão sexual daqueles que se sentem atraídos pelo mesmo sexo que o seu. Embora a homossexualidade não seja mais considerada um transtorno psicológicos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 1990, milhares de pessoas são levadas a esses tratamentos em consultórios ou templos religiosos em sua maioria, de forma compulsória. 

“Tem muita gente que chega para mim e fala: mas eu não queria ser assim, como você me fala que é uma construção?”, diz a psicóloga doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, Déa E. Berttran. Para ela, a orientação sexual não tem um caráter genético, é uma construção que acontece de forma inconsciente, não se escolhe ser assim: “As pessoas acham que a causalidade biológica lhes tiraria a culpa, mas não existe culpado, o que se tem que entender é que são expressões da sexualidade e não existe uma mais legítima do que a outra”.

A pesquisa de Déa tenta entender como esse discurso afeta, principalmente, os casais homoafetivos de longa data. Sua primeira percepção foi a que fez com que ela decidisse falar mais sobre esse tema. “Em congressos de psicologia clínica todos os eixos temáticos são de transtorno, é difícil você propor algo como qualidade de vida”, afirma ela, que se queixa da ausência de estudos sobre essas famílias.

A falta de rede dessas pessoas também é outra consequência, ainda longe de ser resolvida, apontada por ela. “Hoje em dia acredito que é relativamente diferente na questão da violência, mas se assumir continua sendo psicologicamente difícil. Ter que lidar com o choro dos pais por exemplo”, diz Déa criticando fortemente a atitude da família, que apenas soma a tudo que o filho já tem que enfrentar do resto da sociedade.

Esse tipo de situação faz com que a maioria dos gays e lésbicas nãos absorvam elementos de parentesco de seus parceiros: “Eles nunca se referem às pessoas da família do parceiro como cunhada ou sogra, é sempre a irmã dele ou a mãe dela. O que mostra um grande distanciamento, embora hoje ache que isso já está mudando mais do que antigamente.”

Assim, fica clara a hostilidade dessa herança heteronormativa, podendo, inclusive, fazer com que essas pessoas internalizem aspectos homofóbicos. É o caso de Dani, uma das mulheres entrevistadas por Déa, que queria deixar de ser lésbica. No entanto, pensar nessas normas que devem ser seguidas com base na heterossexualidade podem servir de estímulo em determinados momentos. Como para Raquel, que por já ter se casado e tido um filho, cumprindo com o papel imposto a ela, pôde, enfim, fazer o que realmente queria.

De qualquer forma, os casais analisados por Déa não parecem ter rompido totalmente com o legado heterossexual que receberam, eles só o absorveram de formas diferentes. Porém, para ela, os gays homofóbicos ainda são maioria e se apresentam de diferentes formas. Seja naquele conservador que odeia ser gay apenas por odiar, seja naquele que não queria ser pela dificuldade que é lidar com isso, o que explica a grande taxa de depressão e suicídio dessa comunidade. “Não vou fazer a cura gay né, até porque eu acho que não existe. Mas é mesmo muito difícil aceitar algo que você não deseja.”

Histórico nacional da cura gay

No Brasil, a cura gay tem seu princípio no começo do século 20. Leonídeo Ribeiro, médico e estudante de criminologia, criou o Laboratório de Antropologia Criminal no Rio de Janeiro e, em 1935, usou recursos do Estado para uma equipe de estudo da constituição morfológica de 185 homossexuais. Ribeiro defendia que homossexuais deviam ser tratados e buscava sinais de “interssexualidade” que serviria para identificá-los. Assim, foi fundado o Sanatório Pinel, em Pirituba, que começou a aceitar pacientes masculinos para tratamento. Naquela época, famílias internavam abertamente seus parentes com o intuito de revertê-los. 

Protesto contra “Operação Limpeza” no centro de São Paulo, em 1980. Foto: Reprodução/A História do Movimento LGBT Brasileiro

No início, o principal método utilizado era o confinamento. Mais tarde, começaram a ser usados medicamentos de esquizofrenia, porque se acreditava na semelhança entre homossexuais e esquizofrênicos. O fim dos tratamentos no sanatório ocorreu em 1945, quando foi entregue aos cuidados do Estado. Em 1985, o Brasil deixa de considerar a homossexualidade uma doença e a OMS, em 1990, também a retira da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. Em 1999, foi proibido o tratamento psicológico que visa reverter homossexuais, pelo Conselho Federal de Psicologia.

Recentemente, o assunto voltou à tona depois que, em 2017, o juiz da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, Waldemar Claudio de Carvalho, emitiu decisão na qual o tratamento de reversão não deveria ser vetado a quem procurasse por ele. Carvalho justificava alegando censura a profissionais que quisessem promover estudos sobre a orientação sexual. A ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, derrubou a decisão, em primeira instância. Um episódio similar já havia acontecido em 2013.

Cura gay além da Igreja

Muitos acreditam que há uma forte ligação da ideia de cura para homossexuais com a Igreja, mas para Alexandre Oviedo, a relação vai muito além. Sua pesquisa de mestrado envolvia o estudo da Tribal Generation: propostas de modelo de igrejas que surgiam entre 1990 e 2000. Elas eram mais voltadas a jovens e sua principal característica era a quebra da estética tradicional do pastor engravatado com a Bíblia. “Começa a abrir espaço para essas diferentes estéticas, como pastores surfistas pregando em templos decorados com pranchas de surf, ou cultos que se assemelhavam a shows de rock”, relata Alexandre.

Ao longo de sua tese, o pesquisador percebeu que, ao mesmo tempo em que se criava uma flexibilização da estética, o rigor na área da sexualidade aumentava. Essa rigidez baseava-se na condenação da homossexualidade, não só em relação ao pecado, mas também à santidade sexual (que diz respeito à promiscuidade). Para Oviedo, esse comportamento tinha como objetivo uma legitimidade: “Como eram igrejas novas que estavam nascendo para um público mais específico, eles procuravam, dentro do campo mais amplo, constituir uma certa legitimidade [em relação a igrejas mais antigas] que foi construída a partir dessa restrição na área da sexualidade.” 

Para Alexandre, mesmo com um processo de legitimidade da população LGBT, permitido pela implementação de certas políticas públicas durante o governo Lula (como o programa Brasil sem Homofobia), “ainda persiste muito forte na sociedade a ideia de que LGBTs sofrem de algum tipo de distúrbio, quando não safadeza ou algo do tipo”. 

No Brasil, a condenação da homossexualidade, assim como embates contra a decisão do Conselho Federal de Psicologia, é muito relacionada a personagens que se ligam à igrejas pentecostais como Marcos Feliciano, Silas Malafaia, Marisa Lobo, entre outros. Essas pessoas frequentemente usam suas redes sociais como meio de difundir opiniões contrárias ao movimento LGBT, e contam com um número expressivo de apoio.

Alexandre acredita que a ideia de que homossexuais sofram de alguma condição “está presente no geral na nossa sociedade, que historicamente é uma sociedade conservadora, misógina, machista e homofóbica e isso também faz parte de uma construção histórica”. Em 1990, o Brasil passa a ser considerado um Estado Laico, com separação entre Estado e Igreja, mas, na prática, está longe de comprovar sua laicidade. O pesquisador ressalta que, a partir da Constituição de 1988, há uma entrada massiva de lideranças pentecostais na política nacional e, assim, cria-se uma interface em que, ao mesmo tempo que essas lideranças ganham espaço na política, há uma maior visibilidade do movimento LGBT: “É nessa interface das relações que eclode um processo de disputa entre atores religiosos e LGBTs, sendo evidenciado midiaticamente posicionamentos públicos mais conservadores e até mesmo homofóbicos”.

Essa discussão abre espaço para a heteronormatividade, que implica na homofobia presenciada no país hoje. Nas palavras de Oviedo, “é uma forma profundamente institucionalizada e muitas vezes violenta de negar essa existência das pessoas”. Vive-se em uma sociedade historicamente e culturalmente preconceituosa e a religião faz parte dessa trajetória.

Toda essa discussão, no entanto, deve carregar o mínimo de cuidado. Oviedo ressalta que, quando fala-se em igreja, ou em uma “visão cristã”, há muitas especificidades que merecem atenção. “A categoria ‘evangélicos’ não consegue abarcar a grande heterogeneidade dentro do campo protestante. Então, é preciso denominar a especificidade de quais igrejas e lideranças estamos falando”, explica. 

O campo evangélico, no Brasil, é muito amplo e essa margem abre espaço para a presença de vários tipos de igrejas com várias ideias a respeito da sexualidade: “Nós vamos ter igrejas que vão olhar pra homossexualidade como pecado e possessão demoníaca. Temos outras igrejas com algumas lideranças para as quais tenho olhado mais, que articulam os saberes do campo da psicanálise, da psicologia para explicar e legitimar o discurso falando que a homossexualidade consiste, na verdade, um distúrbio causado por abuso sexual na infância e por famílias desestruturadas”. Há até mesmo igrejas que interpretam a Bíblia de forma a não considerar LGBTs como pecadores. É por isso que é importante saber analisar o todo dessa imensa rede de crenças brasileiras.

Parada gay de São Paulo em 2019. // Foto: O Globo

Cultura como amparo e resistência 

O universo cultural captou de diversas formas o sofrimento daqueles que passaram por terapias de reversão sexual muitas vezes, baseando-se em histórias reais. Devido a isso, a pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Daniela Marino, acredita na importância da cultura pop para tocar as pessoas sobre o assunto. “Você tem filmes, livros e HQs que conseguem levantar uma discussão e uma sensibilização em respeito à vida dessas pessoas que passaram por tentativas de cura gay. Através disso, há essa possibilidade colocar-se no lugar do outro”, diz ela. 

Uma das últimas produções de grande sucesso que fala sobre o tema foi o filme Boy Erased (2018), baseado no livro autobiográfico de Joel Edgerton que, em sua juventude, foi obrigado por seus pais a passar pela terapia de reversão. No Brasil, o lançamento da obra nos cinemas foi cancelado, segundo a produtora, por motivos estritamente comerciais o que não impediu que diversos internautas declarassem sua insatisfação e fizessem questionamentos sobre uma possível censura. Essa situação fez com que o filme ficasse muito mais famoso, abrindo debates sobre a cura gay. 

Segundo Daniela, a internet tem um papel fundamental na propagação dos discursos sobre narrativas das minorias, proporcionando que vozes silenciadas sejam ouvidas e vistas como inspiração. “Essas produções têm tido bastante destaque não só pela sua qualidade, mas também pelo seu potencial de inspirar outras pessoas que passam por situações similares. A cultura pop se retroalimenta pelo imaginário coletivo, então a partir do momento que você possibilita novas narrativas que fogem do padrão hegemônico, você está possibilitando que as pessoas sonhem com alternativas que não tinham antes”, declara ela. 

Além da internet, a pesquisadora acredita que outros locais públicos também podem ser um ambiente próspero para a diversidade. É o caso das gibitecas tema no qual se debruça em seu mestrado. “A ideia das gibitecas é que elas sejam espaços gratuitos justamente para todos terem acesso, independente de gênero e raça. Acredito que elas, como espaços públicos de acesso à cultura e lazer, têm função social de promover inclusão”, diz Daniela. 

Apesar dos passos tímidos, as mudanças na sociedade surtem um crescente efeito na cultura de massas. Através de um número cada vez maior de produções sobre personagens homoafetivos no cinema, livros ou quadrinhos passa a ocorrer uma subversão do discurso hegemônico. Para Daniela, a possibilidade de pessoas contarem suas próprias histórias (antes marginalizadas) é uma oportunidade de proporcionar identificação e normalização de práticas que ainda não são consideradas normais para sociedade.  

Mesmo em um cenário atual tão repressor às minorias LGBTs, a arte e a cultura seguem sendo formas de resistência à violência e questionamento daquilo que desrespeita a humanidade alheia. A pesquisadora crê que a resistência cultural seja cada vez maior, assim como as representações: “Uma vez que as pessoas sentem o gosto de ter sua voz ouvida, de conseguir se expressar, a tendência é que elas só aumentem”. 

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