Retrato de mulher popular em telenovelas tem divisões sociais e preconceitos

As telenovelas de João Emanuel Carneiro analisadas na pesquisa (Imagem: Reprodução/YouTube)

Carminha, Mãe Lucinda, Zezé, Tessália… Não há certeza, mas é grande a chance de o leitor ter imediatamente recordado da telenovela “Avenida Brasil”, um dos maiores sucessos da década, ao notar as palavras iniciais deste texto. Todas as citadas são personagens da produção, exibida pela Rede Globo em 2012; todas elas, personagens femininas populares, um nicho das telenovelas que mereceu estudo na Escola de Comunicações e Artes da USP: em março de 2019, Rosana Mauro defendeu sua tese de doutorado dissecando o tema, A construção discursiva televisual da mulher popular na telenovela: um estudo sobre personagens de Avenida Brasil e A Regra do Jogo.

Em seu trabalho, a pesquisadora classificou e organizou essas mulheres populares de acordo com seus perfis em cada uma das telenovelas analisadas, ambas escritas por João Emanuel Carneiro – além de “Avenida Brasil”, também “A Regra do Jogo” (2015-2016), terceira “novela das nove” de Carneiro. As bases para a organização, segundo ela, vêm de dois conceitos teóricos: o capital cultural e habitus, apresentados por Pierre Bourdieu, e a atualização marxista feita por Ricardo Antunes, com o termo “classe-que-vive-do-trabalho”.

“Considerei como populares as mulheres pobres que precisam trabalhar e também aquelas que enriqueceram depois de adultas e ainda têm o mesmo capital cultural e habitus da classe social de origem (popular)”, afirma Rosana. “A partir desse recorte, encontrei diferentes perfis de personagens, e aí houve todo um trabalho de agrupamento com o objetivo de encontrar tipologias”. (O agrupamento pode ser visto ao final da reportagem, em tabela cedida pela pesquisadora.)

Além do trabalho de João Emanuel Carneiro nas telenovelas analisadas, Rosana Mauro destaca também a direção de Amora Mautner, presente tanto em “Avenida Brasil” quanto em “A Regra do Jogo”. Para a pesquisadora, algumas características e inovações propostas por Mautner contribuíram para o realce à mulher popular nas produções, como o protagonismo do subúrbio em “Avenida Brasil”, o conceito de câmera escondida em “A Regra do Jogo” e as improvisações e falas coloquiais. “Tudo com o intuito de conseguir mais naturalidade e espontaneidade”, conta Mauro.

Dividindo as personagens

Como evidentemente as mulheres populares não são iguais entre si, a pesquisa retrata ainda algumas das divisões sociais entre as personagens estudadas, como classe, cor e credo, que permitem uma análise mais profunda do tema.

Quanto à classe social, Mauro divide as personagens entre as trabalhadoras e as emergentes sociais, especificando as trabalhadoras em três categorias: as periguetes, as empregadas domésticas e a mulher valente.

As periguetes, segundo a divisão da pesquisadora, são “mulheres novas, que trabalham, mas não gostam do trabalho, querem ser famosas, ou já trabalham com música ou dança; vestem-se de forma sensual; apresentam vários namorados durante a trama, podem ser interesseiras ou não”. Suellen (Ísis Valverde), de “Avenida Brasil”, e Mel (Fernanda Souza), de “A Regra do Jogo”, são alguns exemplos.

Enquanto isso, a mulher valente é considerada uma variação da “mocinha melodramática tradicional”, segundo Mauro. “A mulher valente é mais velha que a mocinha clássica, o trabalho é central em sua vida, são independentes, ajudam outras mulheres, algumas são mães solteiras, mas também procuram um relacionamento, ou tem um par romântico”, resume.

No que tange às crenças, a pesquisadora notou que o catolicismo, principal religião do Brasil, é repetidamente ligado a várias personagens, seja por acessórios, seja pelo próprio cenário. Por sua vez, a religião evangélica, segunda maior em número de praticantes no país, ainda remetia a uma certa ironia: “(ela) esteve presente em duas personagens de forma satírica”, diz.

Para analisar as questões raciais, Rosana se apoia nas diferenças evidenciadas pelas empregadas domésticas, que dividiam-se entre brancas e negras. “As primeiras tiveram uma narrativa de transformação, abandonaram o emprego e tiveram o âmbito privado explorado”, aponta, como ocorreu com Nina (Débora Falabella), uma das protagonistas de “Avenida Brasil”. Enquanto isso, as negras não tiveram tal mobilidade social nas tramas: “começaram e terminaram como empregadas domésticas e não tiveram sua intimidade explorada (ou seja, não tinham família, casa)”, conta Rosana – como Zezé (Cacau Potássio), na mesma telenovela.

A recepção do público e o preconceito enraizado

Apesar de a pesquisa focar nas produções das telenovelas, Rosana Mauro pôde identificar algumas reações do público às personagens femininas populares. “Os telespectadores identificam as personagens com pessoas da vida real, fazem relações, e reproduzem em suas leituras um preconceito de classe”.

Esse preconceito, diz ela, remete a estruturas sociais de séculos passados, pelas quais as mulheres de elite eram limitadas às suas casas e as pobres vinculadas ao trabalho e ao espaço público. Isso é retratado nas telenovelas contemporâneas, em que muitas das mulheres populares circulam pelas ruas ou são retratadas de forma que as ligam às ruas, algo estimulado até mesmo pelas trilhas sonoras igualmente populares e pelo olhar cômico apontado para as personagens.

“A comédia acaba reproduzindo, nos casos analisados, um sentido de inadequação dessas mulheres populares pelo ponto de vista de uma classe média hegemônica”, resume a pesquisadora.

O tabelamento

A seguir, a tabela de divisão das personagens, na qual “cronotopo”, explica a pesquisadora, trata-se de um conceito de Mikhail Bakhtin para unir tempo e espaço. Inicialmente proposto para a literatura, a teoria do russo foi adaptada por Mauro para as telenovelas, para as quais a pesquisadora dividiu “suas” mulheres populares em quatro cronotopos.

Cronotopo Tempo Espaço Sentido figurativo ou temático Personagens
Aventura Acelerado Várias casas, prisão, viagens Injustiça, Segredos, Descobertas, Crimes, Provações Tróia, Carminha, Atena, Domingas, Lara, Monalisa
Trivial Dia a dia Morro da Macaca, Bairro Divino, casa de Monalisa, salão de beleza de Monalisa, loja de Indira, casa de Indira, mansão de Tufão, cobertura de Feliciano, mansão/hostel de Adisabeba Costumes do dia a dia (comida, bebida, sexo, convivência, vida dos outros, consumo);
Figurativização das classes populares
Muricy, Ivana, Tessália, Suellen, Beverly, Olenka, Adisabeba, Indira, Andressa, Mel, Ninfa, Alisson, Dolores, Janete
Terceiro na vida privada Parado, Passado Lixão, casa de Lucinda, casa de Djanira, pensão de Sueli Contos de fadas, inocência, lealdade, segredos do passado, acolhimento, origem Djanira, Lucinda, Sueli, Betânia
Encontro Simultaneidade Mansão de Tufão, mansão/hostel de Adisabeba, Caverna da Macaca Encontro entre o trivial e a aventura. Onde tudo acontece ao mesmo tempo

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