Relação entre professores e gosto musical dos alunos é deixada de lado na educação

Pesquisador testa suas próprias crenças para notar pluralidade musical entre alunos e desconhecimento entre professores

Estudo e música são aliados para 89,5% dos alunos entrevistados (Foto: Gabriel Araujo)

O uso da música como instrumento didático não é uma grande novidade: é muito provável que todas as últimas gerações que passaram pelo Ensino Médio, por exemplo, conheçam alguma canção como recurso mnemônico. À parte disso, entretanto, será que os professores realmente conhecem o que seus alunos ouvem e utilizam as músicas favoritas dos estudantes como instrumento de auxílio às aulas? Buscando essas respostas, o professor Rogério Pelizzari de Andrade desenvolveu Rap, funk e pop internacional: percepções dos professores sobre as referências musicais dos alunos, tese de doutorado produzida na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e defendida no último dia 15 de março.

Em sua pesquisa, que avança sobre o ramo da Educomunicação, Pelizzari entrevistou 1.482 alunos de cinco escolas diferentes de São Paulo, nas zonas Sul, Leste e Norte, à procura de descobertas a respeito dos gostos dos alunos para a música. Em seguida, submeteu 36 professores a testes para entender seus conhecimentos a respeito dessas canções e sua abertura para explorá-las dentro das aulas. Os resultados o surpreenderam.

“Me dei conta de que eu era um leigo na área. A maioria dos artistas citados, mais de 60%, eu não conhecia. O volume de informações dos alunos foi muito grande, fiquei fascinado, descobri informações que nem poderia imaginar, como a citação de 122 MCs diferentes ou categorias de música geek, de seriados, filmes e games”, afirmou Pelizzari em entrevista à Agência Universitária de Notícias.

De fato, foram 44 citações a músicas do “universo nerd”, com trilhas de jogos de videogames, como Super Mario e Mortal Kombat, e filmes, como Star Wars – uma minoria, porém, diante dos dados totais. Entre os quase 1,5 mil estudantes, foram mencionadas 2.763 canções de 1.579 artistas diferentes, sendo 62,8% delas nacionais.

Segundo o pesquisador, o título do trabalho advém exatamente dos gêneros mais citados. Como cada aluno podia assinalar mais de uma categoria preferida no questionário aplicado, rap e funk obtiveram cerca de 70% de preferência cada, com o pop internacional um pouco abaixo. Entre o grupo mais jovem de estudantes, o funk chegou a 80% da preferência na pesquisa, na qual meninas se mostraram maiores apreciadoras de músicas dançantes, como funk e sertanejo, e entre meninos, rap e funk lideraram isoladamente.

A tabulação dos dados apontou também que os gêneros que os estudantes mais detestam, dos quais alguns talvez façam parte do repertório dos professores, são jazz (citado negativamente 61,9%), axé (61,6%), música clássica (60%) e forró (55,3%).

Ainda nos dados obtidos com alunos, Pelizzari pôde identificar que 89,5% dos entrevistados disseram ouvir música ao mesmo tempo em que estudam – dado que, segundo o pesquisador, foi motivação extra para prosseguir com a pesquisa. Em relação à maneira como escutam música, 93,6% dos alunos dizem consumi-la pelos smartphones, enquanto somente 27,9% utilizam o rádio.

Aplicando os resultados dos alunos aos professores, Pelizzari notou que, entre estes, há uma grande ignorância – no sentido do desconhecimento – a respeito das músicas escutadas por seus pupilos. Na dinâmica, o pesquisador apresentou aos professores figuras midiáticas contemporâneas da área musical, tendo registrado apenas 15% de taxa de reconhecimento. Mais a fundo nas músicas, a tendência foi de uma visão crítica dos professores, especialmente por “letras ruins” – alguns deles, confessa o pesquisador, criticavam sem que sequer soubessem exatamente do que se tratava.

“Alguns até conheciam algumas das músicas, como ‘Só Quer Vrau’, mas não pelo título, e sim pelo ritmo”, diz Pelizzari, mencionando que, nesse caso específico, o funk de MC MM utiliza como base “Bella Ciao”, popularizada pelo seriado “La Casa de Papel” e tradicional hino antifascista. Esse último fato, afirma o pesquisador, poderia ser melhor utilizado pelos professores, especialmente em um contexto de profundas discussões sobre fascismo e adjacentes, mas nenhum deles se atentou a isso.

Experiências dos professores com músicas
Na construção da pesquisa, Rogério Pelizzari de Andrade encontrou apenas três professores que utilizaram músicas populares entre os alunos para desenvolverem projetos estudantis. Entre eles, somente uma professora de Sociologia foi bem sucedida na empreitada, ao construir um desafio em que os alunos apontavam suas canções favoritas e trabalhavam criticamente em cima delas.

“Naquele momento, houve um envolvimento dos alunos, uma troca de experiência, trabalho em grupo, resolução de problemas”, contou o pesquisador. “Autores como Paulo Freire pensam a aprendizagem assim, a partir de elementos que façam sentido para o aluno, como uma negociação com o estudante”.

Segundo Pelizzari, um dos professores se frustrou com sua experiência musical nas aulas, mas o erro foi identificado: ele utilizou músicas de seu próprio repertório, pedindo para que os estudantes tecessem análises filosóficas sobre elas, e não canções com as quais os alunos possuíam contato direto. “Eles fizeram, mas como se fosse ‘só mais um trabalho’”, comenta.

Compreendendo o desconhecimento
Para o pesquisador, a ignorância dos professores em relação às músicas é justificável pela enorme carga de trabalho da categoria em diferentes frentes, o que torna praticamente inviável uma conexão com o volátil universo musical atual. Não à toa, a experiência musical que funcionou, explica Pelizzari, ocorreu em uma escola de período integral, na qual o professor tem tempo para preparar seu trabalho, experimentar as melhores maneiras de aplicá-lo e acompanhar com mais tranquilidade os alunos.

“O professor normalmente é estrangulado”, resume o autor da pesquisa.

No desenvolvimento da tese, Pelizzari se deparou com conceitos novos para sua própria atuação como professor, experiência profissional em que já havia tentado utilizar músicas, mas nunca com grande complexidade. “Eu mesmo ignorava 90% das músicas citadas, passei por cima dos meus próprios preconceitos, do meu conhecimento simplório”.

“Como professor, me espantei. Quantos professores imaginam que a música favorita do seu aluno vem de um videogame, por exemplo? Isso me motivou a buscar informações para ajudar o professor não só a ensinar, mas a entender quem é seu interlocutor, para construir um diálogo, uma relação com o aluno”, comenta Pelizzari.

Música: pluralidade e prazo de validade
A pesquisa contribuiu ainda para a identificação, a partir da música, da pluralidade que ronda a educação brasileira. Além dos mais de cem MCs e à parte do sucesso estrondoso de funk e rap, Pelizzari pôde identificar gostos muito variados nas escolas brasileiras, que vão do gospel às músicas bolivianas e haitianas.

“Em uma escola da Mooca, que é uma região que tem muitos estrangeiros, encontrei filhos de bolivianos; no Ipiranga, um garoto haitiano… e eles citaram músicas dos países deles”, diz o pesquisador. “Com isso, podemos perceber como os grupos escolares são diferentes e discutir a personalização da educação, os diferentes perfis discentes”.

“A música é apenas uma variável, imagine só as outras. Provavelmente fazem muitas coisas diferentes, então podemos pensar um modelo de educação que inclua essas pessoas”, completa.

Além da pluralidade, a pesquisa também apontou uma perecibilidade extrema do setor musical. Penetrando a fundo na área, agora sem tanta relação com a educação, nove entre as dez músicas mais citadas do trabalho possuíam menos de seis meses de lançamento, demonstrando como boa parte da produção musical atual já nasce com prazo de validade.

“Impressiona como a música é perecível atualmente, tende a ser esquecida… Se eu fizesse a pesquisa de novo hoje, já poderia obter citações diferentes”, menciona o autor da tese, ainda que os gêneros favoritos permaneçam. Como exemplo, Pelizzari cita a música “Deu Onda”, funk do MC G15: “foi um dos maiores sucessos de 2016, com um dos maiores índices de download da história, e não foi citada nenhuma vez no trabalho”.

“No fim do ano passado, para ter uma ideia, procurei a lista das músicas mais ouvidas no Spotify para comparar com a pesquisa: a mais citada pelos alunos estava em quarto, mas entre as 50 mais ouvidas (no aplicativo), só estavam três citadas na pesquisa.”

Música, educação, cidadania
Apesar da densidade do trabalho, a tese pode ser resumida em alguns pontos principais, sob um olhar mais panorâmico: a música é de fato muito presente na vida dos estudantes, com 90% dos alunos escutando canções todos os dias; os professores tendem a ter pouco conhecimento do que seus alunos ouvem – uma delas, segundo Pelizzari, pensava que “Cerol na Mão”, de 2001, era um sucesso do momento; há, porém, experiências positivas com a música em escolas, apesar de raras.

“É possível até mesmo pensar uma política educacional a partir disso, monitorando as transformações”, diz o pesquisador. “No fundo, a educação é isso: de que forma podemos ampliar nosso repertório de uma maneira crítica, formando cidadãos autônomos, que pensem por eles mesmos”.

A música, fica evidente, pode contribuir com a proposta – e não apenas por meio de canções mnemônicas para que se monte a tabela de seno, cosseno e tangente. O que é popular e está no gosto do público, mostra a pesquisa de Educomunicação, não só não deve ser escanteado, como pode ser utilizado, pois, como instrumento intrínseco à formação.

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