Prática inspirada em Paulo Freire é ferramenta para tradução literária

Ideias do educador são usadas para análise de obras infantis e auxiliar tradutor

Alunos da Rede Pública paulistana, após conversar sobre os poemas, fazem desenhos motivados pelos textos. Fonte: Arquivo pessoal de Telma Franco Diniz.
Fachada da Escola Primária Thriplow, onde o cantinho da leitura tornou-se campo de pesquisa. Fonte: arquivo pessoal de Telma Franco Diniz

Os poemas As Meninas e O Menino Azul, ambos da escritora Cecília Meireles, traduzidos para o inglês, foram apresentados a um grupo de crianças estrangeiras sem que lhes fosse informada sua autoria.

Na Escola Primária Thriplow, localizada numa vila próxima a Cambridge (Inglaterra), a brasileira Telma Franco terminou de ler as poesias junto às crianças, primeiro em silêncio e depois em voz alta, e esperou que elas lhe contassem o que viram de estranho nos textos.

Assim, sem perguntas diretas, inicia-se uma discussão que envolve os alunos, na qual eles constroem suas interpretações livremente. “Nem sempre se chega ao final com uma interpretação só. Muitas vezes cada criança mantém a própria interpretação sem mudar até o final. Outras vezes ela aceita a ideia do colega e muda. Então é parecido com uma roda de leitura em que o mediador tenta não interferir muito”, diz Telma, que explica o funcionamento da atividade Pensar Alto em Grupo (PAG).

Telma Franco Diniz, natural de Ituiutaba (MG), tem um currículo pouco uniforme. Graduou-se em Engenharia Química, fez mestrado em Engenharia dos Alimentos e deu aulas de Tecnologia dos Alimentos por dois anos. Não obstante, a literatura sempre esteve presente em sua vida, presença que se intensificou a partir do momento em que passou a dar aulas de inglês, em 1998. A tradução lhe perpassou a vida quando entrou numa empresa de tradução de legendas. Em 2012, concluiria outro mestrado, dessa vez em Estudos da Tradução, pela Universidade Federal de Santa Catarina. É em 2014, contudo, que Telma começa o projeto que a levaria à Inglaterra para conversar com crianças sobre dois poemas de Cecília Meireles.

Sua tese de doutorado, feita pela USP, tem como ponto central o Pensar Alto em Grupo. Inspirado nas ideias de Paulo Freire, esse é um método de mediação de leitura com vistas a formar um leitor crítico. “Freire acreditava que o educador deveria aflorar o conhecimento do educando, sem impor sua visão de mundo ao aluno”. Perguntada se o método incentiva a leitura, Telma enfatiza: “Incentiva sim. É que há às vezes esse medo de ler poesia e não entender. Aí, quando você está em grupo, discutindo, seu colega pode falar alguma coisa, outro pode concordar, outro pode contestar e outro pode dar uma terceira opinião… E assim é possível haver várias leituras. Não tem uma resposta única”.

Antes de viajar à Europa, a pesquisadora experimentou a mesma atividade com dois grupos de crianças brasileiras, de nove a doze anos, matriculadas no Ensino Público da Cidade de São Paulo. Em seguida, os poemas foram vertidos ao inglês com a ajuda da poeta e tradutora britânica Sarah Kersley. Por fim, pôde-se ir à Inglaterra testar a experiência em duas escolas, uma na pequena cidade próxima a Cambridge e outra em Birmingham.

Interpretações? Várias e válidas

O que despertou a atenção de Telma foi a grande divergência entre as interpretações. Segundo sua tese, “[as divergências são] motivadas pela ancoragem linguístico-cultural, diferentes ambientes histórico-geográficos, história de vida, conhecimento de mundo […]”, conjunto de fatores que Telma resume como o “background” de cada criança.

Um exemplo notável se deu ao adicionar a palavra “dear” (em português, querida) à tradução do poema As Meninas, com o intuito de criar uma rima com “Maria”, nome que Telma quis manter como no original. A pesquisadora se surpreendeu com a leitura das crianças. “Elas acharam que a Maria fosse a mãe das outras, porque não é comum criança falar ‘dear’, mas sim os pais”.

Se tal sutileza linguística poderia mudar completamente o sentido do texto, Telma concluiu que o Pensar Alto em Grupo apresenta-se como uma boa ferramenta para a tradução literária. Trocando em miúdos, o tradutor tem em tal método uma forma de testar a recepção do texto traduzido.

“Do ponto de vista do tradutor, eu vi que mudava muito a interpretação porque eu usei ‘dear’. Então eu poderia refazer uma tradução, com nomes todos ingleses, com rimas, sem acréscimos, para ver o que elas interpretariam”.

O Menino Azul

“Por que um burrinho?”

“Por que não um cachorro?”

Essas foram perguntas suscitadas pelo poema “O Menino Azul”. “Já sei!”, disse uma criança, “com um burrinho ele pode ir montado e sair pelo mundo!”. “Nããão”, rebateu outra, “ele é azul porque ele é puro, ele é inocente”, puxando dessa vez para uma leitura mais metafórica.

Em uma das escolas brasileiras, imaginou-se que o menino não tinha amigos e queria um burrinho para lhe fazer companhia. Todo o grupo embarcou nessa, e descobriu-se que o menino não tinha amigos porque era azul. Ele devia sofrer bullying na escola, pensaram todos, e assim começou uma longa discussão sobre bullying.

Na Inglaterra, concluiu-se que o menino era solitário porque era órfão. Coincidência ou não, a semana em que Telma esteve lá era véspera do Remembrance Day, feriado em que são lembradas conquistas e perdas humanas durantes as guerras passadas.

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