Com o Allianz Parque, Palmeiras “arenizou” sua casa e sua torcida

Arena multiuso alterou práticas torcedoras e afastou o palmeirense que, sem dinheiro para o ingresso, nem na rua pode ficar

Arena multiuso, inaugurada em 2014, tem capacidade para 43,6 mil torcedores. Foto: Reprodução/Facebook

Após inauguração do Allianz Parque, a forma de torcer do palmeirense se alterou. No final de 2014, depois de quatro anos de terreno fechado para obras, o estádio Palestra Itália foi finalmente substituído pela arena multiuso: o Palmeiras mudou de casa. Junto com as novidades no espaço, vieram as novas práticas torcedoras, defende Marina Mandelli em sua dissertação de mestrado Allianz Parque e Rua Palestra Itália: práticas torcedoras em uma arena multiuso, desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“A modernização do estádio do Palmeiras se insere numa onda de atualizações que tomou o país no cenário da Copa do Mundo no Brasil”, contextualiza a pesquisadora. Um dos efeitos desse movimento é a elitização do ambiente e de seus frequentadores. Os altos custos de manutenção do espaço e as exigências contratuais da empreiteira WTorre demandam ingressos mais caros. Para os que pretendem acompanhar o time de perto durante toda a temporada, a opção mais vantajosa é se tornar um sócio-torcedor sócio Avanti, no caso do palmeirense.

Para o torcedor que não tem condição de bancar o gasto mensal da carteirinha,não há descontos nem prioridade de compra. Para esses, costumam sobrar apenas ingressos nos setores mais caros da arena. “O sócio-torcedor é uma barreira financeira importante e também funciona como uma amarra, porque obriga o torcedor a ir em todos os jogos para valer a pena. Burocratiza a experiência torcedora”, avalia Mariana. A ‘arenização’ traz, assim, mudanças no perfil do frequentador do estádio. “Os próprios moradores da região percebem que a torcida ‘ficou mais branca’”, exemplifica a pesquisadora.

Outras alterações se relacionam menos com o preço dos ingressos. A extinção da arquibancada e sua substituição pelas cadeiras, por exemplo, atrai o palmeirense que vê o jogo sentado, que não passa os 90 minutos pulando e cantando. Os telões de led ao redor do campo e a ansiedade dos torcedores por uma interação com as câmeras revelam a importância dada pelos frequentadores da arena ao consumo da imagem. Já os produtos personalizados, vendidos exclusivamente a cada partida, completam a experiência torcedora, transformando-a numa experiência consumidora. Nesse processo, passa a dominar a ideia do torcedor-consumidor.

O cerco ao Allianz Parque

Modificações na forma de torcer são comuns a todos os clubes que passam pela arenização. O Palmeiras, porém, “lidera o cenário de exclusão do torcedor que não pode ser consumidor”, afirma Mariana. O clube apresenta peculiaridades que têm sido determinantes nessa relação. Os frequentadores do antigo Palestra Itália criaram uma tradição de ocupação do espaço pela torcida palmeirense. Por décadas, em dias de jogo as ruas ao redor do estádio ficavam tomadas, mesmo após o apito inicial. Com as implicações trazidas pelo Allianz Parque, o número de torcedores que passaram a assistir o jogo nas imediações aumentou: eram os que não tinham condição financeira de frequentar a nova casa, que não se sentiam benquistos ali ou que não se adaptaram a ela. Mariana conta que ouvia de muitos torcedores, saudosos do extinto estádio, que pelo menos “a rua respirava arquibancada”.

Foi assim até a arenização ultrapassar os muros do Allianz Parque e tomar conta das ruas. A final da Copa do Brasil de 2015, entre Palmeiras e Santos, foi um momento de catarse. Estimativas não oficiais falam em 40 mil torcedores dentro do estádio e 40 mil fora. A situação fugiu do controle do clube, que, a partir desse episódio, passou a arquitetar, junto aos órgãos públicos, formas de cercar o estádio. A “solução” veio em outubro de 2016. Desde então, em dias de jogo, são montadas barreiras nas ruas do bairro protegidas pela Polícia Militar, por onde só passam torcedores com ingresso para a partida. “Foi um choque pra todo mundo”, revela Mariana.

Polícia Militar expulsa da rua torcedores sem ingresso. Foto: Reprodução/Twitter

O que ainda hoje se vê na rua, mesmo que em menor grau, é a prova de que o palmeirense resiste. Alguns torcedores furam o cerco e tentam viver a rua como antes. Outros, levam sua torcida para fora das grades, e a festa sobe as ruas. E ainda há aqueles que encontram maneiras de burlar mesmo o sócio-torcedor. Mariana usa como exemplo um grupo de jovens que divide uma só carteirinha, revezando a entrada nas partidas. A resistência se concretiza nos bandeirões, nos sinalizadores, no lanche de pernil e nos churrascos com cerveja e cachaça que seguem acompanhando todo pré-jogo. “O que não pode ser feito dentro do estádio, é feito fora dele”, comenta a pesquisadora. Os que cansaram de se sentir excluídos, porém, se afastaram do clube. E o afastamento não é só físico: “a paixão esmaece”, lamenta a palmeirense Mariana.

Outro importante impacto lembrado pela pesquisadora na transição do Palestra para o Allianz diz respeito à identidade palmeirense do estádio. “A arena não reflete o Palmeiras. Nela não há nenhum escudo fixo do Palmeiras”, conta. O curioso é que, dentro de uma territorialidade urbana que Mariana denominou “mancha verde”, o prédio que destoa é justamente a casa do clube. Os logradouros do entorno são referências ao time Rua Palestra Itália, Passarela Arrancada Heróica, Avenida Antártica , os bares são temáticos, torcidas organizadas têm ali suas sedes, a estação de metrô mais próxima leva o nome do clube: Palmeiras-Barra Funda. Mas na ausência de sua torcida a arena já não dialoga com o ambiente, que, diferentemente do Allianz Parque, “vive o palmeirismo”.

Mariana enfatiza que a arena não criou novos discursos e disputas. Sua função foi acirrar tendências que antes já existiam, de elitização, segregação e priorização do torcedor-consumidor. Ela, que, apesar de palmeirense desde criancinha, se diz uma “neo frequentadora de estádio”, lamenta profundamente a postura do Palmeiras em relação a sua torcida e confessa que a pesquisa modificou completamente sua relação com o time: “mexeu com o meu clubismo nas entranhas”.

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