Consumo de alimentos ultraprocessados dispara entre a população mundial

Em países como EUA e Canadá, 50% das calorias são provenientes desse tipo de comida

A ideia de que o consumo de alimentos ultraprocessados faz mal à saúde ainda é polêmica e causa discordância entre estudiosos. Imagem: Pexels

Por Fernanda Teles, Gabriela Bonin, Giovana Christ e Sabrina Brito

A nutrição humana é assunto recorrente em revistas e jornais ao redor do mundo. Além de estampar capas e manchetes, esse assunto é facilmente encontrado como tema de estudos científicos. Nos últimos anos, pesquisas apontaram para o fato de que a população mundial tem se alimentado de forma excessiva e não saudável. É o caso da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em 2014, publicou um trabalho provando que mais de 50% da população de 114 países estava obesa ou acima do peso.

O perfil nutricional do brasileiro não foge desse panorama. Segundo a nutricionista e professora da Unifesp, Maria Laura da Costa Louzada, análises de pesquisas domiciliares realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nos últimos 30 anos explicitam o aumento da frequência da obesidade e do excesso de peso em todas as classes sociais. Em 2013, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) estimou uma prevalência de 57,3% de excesso de peso em homens e de 59,8% em mulheres.

Um dos grandes vilões dessa piora na saúde em decorrência de uma nutrição negativa é o universo dos alimentos ultraprocessados. Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, feito pelo Ministério da Saúde, esse tipo de alimento é caracterizado por envolver diversas etapas e técnicas de processamento. Além disso, eles são feitos a partir de muitos ingredientes, incluindo sal, açúcar, gorduras e substâncias de uso exclusivamente industrial. Muitas dessas substâncias sintetizadas têm como função estender a duração dos alimentos ultraprocessados ou dotá-los de cor, sabor, aroma e textura que os tornem atraentes. Entre os alimentos ultraprocessados, podemos citar salgadinhos, bolachas, bolos de pacote, barras de cereal, embutidos (como salsicha, presunto e linguiça), refrigerantes, sucos artificiais e pratos prontos e semiprontos para o consumo.

Igor Navarro, de 12 anos, está inserido nessa realidade que inclui o excesso do consumo de alimentos ultraprocessados. Segundo Patrícia Navarro, sua mãe, os salgadinhos, as bisnaguinhas, o nuggets e o chocolate estão inseridos diariamente na dieta dele, sem esquecer da Coca-Cola, presente em quase todas as refeições. “Sinceramente, ele não toma água, é somente Coca-Cola”, diz.  Assim, podemos perceber que o consumo é alto e se inicia desde o começo da vida.

Louzada, que também é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, explica: “A fabricação de alimentos ultraprocessados começa com a extração de substâncias existentes em alimentos inteiros, como óleos, gorduras, açúcares, amidos e proteínas”. Segundo ela, os processos intermediários de produção envolvem hidrólise, que é a alteração de uma substância pela adição de água, hidrogenação, que é a incorporação de hidrogênio à substância, e outras modificações químicas. “Processos subsequentes incluem a criação dos produtos a partir de substâncias modificadas e não modificadas, usando técnicas como extrusão e pré-fritura, além do uso de aditivos para preservar o produto final e torná-lo mais atraente”, complementa.

Motivos para a escolha de ultraprocessados

Essas comidas costumam ser muito agradáveis ao paladar e fáceis de serem ingeridas —  por exemplo, tendem a vir em embalagens leves e chamativas. Assim, não é de se espantar que seu consumo cresça cada vez mais.

Patrícia, mãe de Igor, também aponta que o filho começou a consumir esse tipo de alimento quando tinha aproximadamente dois anos de idade, incentivado pela família de maneira geral. E, a partir disso, o consumo foi se intensificando. Para ela, esse consumo também cresceu devido a vida corrida que leva, o que a faz oferecer para o filho alimentos “mais fáceis” de serem preparados com uma maior frequência.

Segundo dados da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos e da tabela do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, no Brasil, cerca de 20% das calorias consumidas são provenientes de ultraprocessados. Em comparação, países como Estados Unidos e Canadá tem mais de 50% das calorias vindas desses alimentos. Maria Laura Louzada afirma que, mesmo mais da metade da alimentação brasileira ainda se constituindo de alimentos in natura ou minimamente processados, o consumo dos ultraprocessados vem crescendo de modo significativo nos últimos anos.

Um estudo conduzido por alunos da Faculdade de Saúde Pública da USP indicou uma tendência de crescimento mais intenso na compra de alimentos ultraprocessados em países de renda média, como o Brasil. Ainda segundo a pesquisa, a dieta de brasileiro com dez ou mais anos de idade é composta de uma parcela de 21,5% de comidas desse tipo. Ou seja, se trata de uma verdadeira questão de saúde pública.

O aumento no consumo desse tipo de comida tem vários motivadores. Um deles, além do próprio sabor e praticidade dos alimentos, é a publicidade, que, por meio da sedução e atração do público, convence muitas pessoas a comprarem esses produtos.

Conforme afirma Gino Giacomini Filho, professor de técnica publicitária na Escola de Comunicações e Artes da USP, “um anúncio de produto alimentício tem o potencial de exercer pressão psicológica em todas as pessoas ao usar diversos elementos persuasivos. Exemplificando, “temos imagens elaboradas, nem sempre fiéis ao produto que é vendido; omissão de propriedades negativas, oriundas de sal, açúcar, gordura, ingredientes artificiais, e o uso de testemunhos de personalidades que servem como referência para o consumidor-alvo”.

Através da propaganda comercial, grandes empresas promovem seus itens. No caso da indústria alimentícia, essa promoção existe, muitas vezes, às custas da saúde de uma parte considerável da população. “Talvez o caso mais emblemático seja dos anúncios de fast-food, que foram amplamente condenados por profissionais de saúde por incentivarem uma alimentação com muita gordura, sal e açúcar, o que contribuiria para a obesidade e doenças diversas”. Giacomini Filho explica: “Alguns anúncios envolviam psicologicamente as pessoas com a oferta de brinquedos tirando assim o foco da nutrição pouco saudável”.

Algumas pessoas, na justificativa do consumo, afirmam que esses alimentos teriam preços mais acessíveis, o que, segundo Maria Laura Louzada, é uma argumentação incorreta. O conjunto de alimentos in natura ou minimamente processados, que inclui arroz, feijão, carnes, ovos, raízes e tubérculos, possui um preço mais baixo que o conjunto dos ultraprocessados. De fato existem frutas e verduras cujos preços são mais altos, mas os nutrientes necessários para uma boa alimentação conseguem ser encontrados em opções mais acessíveis.

Uma outra visão

No entanto, em discordância com Louzada, o professor e engenheiro de alimentos da Unicamp, Marcelo Cristianini, diz que o termo “ultraprocessados” foi cunhado de forma errônea e não corresponde ao real da indústria. “A definição do Guia Alimentar para a População Brasileira começa dizendo que ‘alimento ultraprocessado é uma formulação’. Dentro do processamento de alimentos, isso não existe. Ou você é um processo, ou é uma formulação”. O alimento formulado contém a mistura de mais de uma matéria prima ou a adição de algum elemento na comida. Por exemplo, quando adicionado açúcar, é feita uma formulação e não um processo. Muitos alimentos vêm formulados com mais vitaminas, ferros e outras coisas benéficas, o que não torna, portanto, a formulação algo necessariamente ruim. O termo correto, entretanto, seria alimentos “ultraformulados”, palavra que também pode causar discórdias dentro da indústria.

Segundo ele, o processamento também não se caracteriza por algo que danifica ou piora os compostos do alimento, e sim, apenas auxilia em seu armazenamento e duração. “A única coisa prejudicial que poderia acontecer é a perda das características sensoriais, como por exemplo, o sabor, pois são compostos extremamente voláteis”, garante Cristianini. O que acontece é a disseminação de informações incertas que confundem a população e a faz pensar que qualquer tipo de industrialização de alimentos é maléfica. O engenheiro de alimentos garante que nenhum processamento faz mal à saúde, por ser verificado por grandes agências de vigilância que asseguram a confiabilidade dos produtos.

Com isso, chegamos a um ponto causador de polêmicas no mundo alimentício. Segundo Cristianini “ao contrário do que as pessoas pensam, um alimento processado envasado em latas ou em caixas longa vida são os que menos levam aditivos, ou praticamente não tem conservantes, pois o processo de conservação é o próprio calor”. E complementa: “Dizer que um alimento enlatado é cheio de conservantes é mentira”. Mostrando que muito do que é entendido como maléfico traz distorções de pessoas que não necessariamente conhecem o processo de industrialização dos alimentos.

Panorama de mudança

Quando questionada sobre mudanças e medidas para diminuir o consumo desses alimentos, Maria Louzada cita o Guia Alimentar para a População Brasileira como um exemplo concreto de resposta para o cenário atual. “O Guia é um documento oficial do Ministério da Saúde que aborda os princípios e as recomendações de uma alimentação adequada e saudável, configurando-se como um instrumento norteador de programas e políticas de saúde e de ações de educação alimentar e nutricional no Sistema Único de Saúde e em outros setores”.

A pesquisadora ainda explica: “O Guia traz como sua regra de ouro: prefira alimentos in natura, minimamente processados e suas preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”. Além disso, pode ser um meio de impulsionar medidas como o aumento da taxação de bebidas açucaradas, a promoção de ambientes institucionais saudáveis e a mudança na rotulagem dos alimentos.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, já se posicionou favorável ao uso de alertas em alimentos ultraprocessados. Em maio deste ano, um relatório sugerindo a adoção de advertências para o excesso de açúcar, sal e gorduras saturadas foi aprovado pela diretoria da Agência. Propostas ainda estão sendo redigidas, mas a tentativa de realizar mudanças na rotulagem mostra um pouco do combate aos índices de sobrepeso e obesidade no País.

Entretanto, o engenheiro de alimentos discorda. “Não é a quantidade de sal ou de açúcar que está no alimento, não é um problema do processamento, é o estilo de vida que faz as pessoas engordarem ou terem pressão alta”. Para ele, a formulação é necessária e, na maioria das vezes, apenas atende aos pedidos dos consumidores. “O alimento processado não necessariamente tem que ser salgado ou doce em excesso por conta do processo, mas pelo gosto do cliente”, diz. Além disso, para o engenheiro, o consumo desse tipo de alimento também se trata de uma questão cultural, mas que também vem se adaptando às mudanças e a conscientização das pessoas de maneira geral.

Inclusive devido a uma exigência da população, mais conscientizada em relação a ingestão de açúcar e sal, há cada vez mais alimentos com quantidades menores desses ingredientes entrando no mercado. A indústria iniciou, portanto, um processo de adaptação e, por isso, vem retirando aos poucos o excesso desses ingredientes em seus produtos. Como é o caso da Coca-Cola, que retirou 25% do açúcar do refrigerante e continuou sendo aceita pelos consumidores.

Enquanto isso, mães e pais, como de Igor, fazem de tudo para mudar as dietas de seus filhos — e até mesmo as suas próprias. “É impossível. Já tentei inserir na alimentação dele um simples tomate ou até um macarrão, grãos, verduras. Tudo em vão”, diz. Segundo Patrícia, nem mesmo apelar para os sonhos do filho adiantou. “Como ele pratica esporte e sonha em ser jogador de futebol, já tentei convencê-lo sobre a alimentação saudável, mas também não adiantou”. Sendo assim, a resistência à mudança é grande, principalmente devido ao costume e ao gosto considerado saboroso desses alimentos.

E assim, enquanto há estudiosos que confirmam os malefícios causados pelos alimentos ultraprocessados e os que discordam, o fato é que o aumento do consumo desses alimentos no Brasil é um fator preocupante, pois coloca em jogo a saúde de toda a população.

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