Novas perspectivas históricas surgem com museus comunitários

Dentro do movimento da nova museologia, estudado por Suzy Santos, memória e história se entrelaçam em novas narrativas

O Museu da Maré inspirou Santos a pesquisar acervos de cultura popular (Imagem: Suzy Santos)

O Museu da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é uma iniciativa participativa das comunidades do bairro em defesa do registro, preservação e divulgação de sua história. Suzy Santos, mestre pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), se encantou pelo fenômeno desde a graduação em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), quando fez Iniciação Científica. Esperando encontrar apenas meia dúzia desses museus, logo se deparou com 76. Essa diferente maneira de pensar as instituições a levou à dissertação “Ecomuseus e Museus Comunitários no Brasil: Estudo Exploratório de Possibilidades Museológicas”.

Nova museologia

“Com base nos autores, nova museologia pode ser várias coisas”, diz Santos. Não há consenso sobre o conceito, até porque o fenômeno se manifesta de formas diversas ao redor do mundo, mas é considerado um movimento social dentro do campo museológico. No Brasil, ele se desenvolveu de forma dinâmica, focando-se tanto nos discursos presentes nas exposições, quanto na participação social. É um campo em disputa, devido à resistência à mudança.

De acordo com a pesquisadora, a nova museologia surgiu como reflexo da sociedade em mudança. “O museu está dentro de um contexto e deve dialogar com esse contexto. Não funciona de forma isolada, ou não deveria funcionar.” Há uma demanda pelo preenchimento de lacunas, a necessidade de ter voz que parte de movimentos como o LGBT, indígena, negro, feminista.

O Museu da Maré é dividido em “tempos” (Imagem: Suzy Santos)

A nova museologia trabalha com a autoestima de grupos desprivilegiados, falando sobre identidade, memória e seus processos de formação. “Quando o olhar é desestigmatizado, cria-se potência, vontade de transformar as comunidades em algo melhor”, afirma Santos. “Isso passa a ser transmitido a novas gerações, a outros grupos. As pessoas se impõem, de alguma forma, dizendo ‘não’.”

A própria pesquisadora provém de uma classe desfavorecida, de uma realidade próxima à de várias das comunidades que aborda na dissertação. Desde a adolescência, tem envolvimento com movimentos sociais, e durante a graduação em História, fez estágio no Museu Paulista. “Não me via representada naquele museu, mas eu conhecia seu acervo e sabia que dentro existiam muitas coisas relacionadas a grupos sociais que não são favorecidos e que poderiam ser potencializados nas exposições”. Foi aí que pensou em estudar acervos de cultura popular.

Museus comunitários

O grande diferencial dos novos museus em relação aos convencionais, que ela chama “conservadores”, é o cumprimento de uma função social. Santos diz que grande parte das instituições tradicionais se voltam para si mesmas, se preocupando apenas com a preservação do acervo, o fluxo do visitante. Não pensam sobre quem é esse visitante, ou de que forma se dá o fluxo. “Se fecham para novas perspectivas, novos públicos, e não pensam em uma mediação inclusiva”. Segundo a pesquisadora, quando o museu sai da posição de educador e começa o processo de troca, traz benefícios tanto para os frequentadores, quanto para a própria instituição, que se revê.

Um exemplo é o próprio MAE, que, apesar de configurar um museu relativamente tradicional, está repensando a maneira de enxergar o acervo. A exposição que estréia em breve, Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena: Resistência Já! Fortalecimento e união das culturas indígenas, foi montada com três povos indígenas. Ela conta, então, com os olhares para o acervo dos profissionais do museu e o dos próprios indígenas. Suas memórias e amplo conhecimento, já que é um estudo sobre eles, traz uma perspectiva diferenciada de outras exposições sobre indígenas.

O Campos de São José, localizado em São José dos Campos, promove troca entre jovens e idosos. Enquanto idosos participam de rodas de memória, contam como foi a construção do bairro, os mais jovens entram com a tecnologia, com registro, manutenção do blog. O museu comunitário tem o papel de provocar pessoas a repensarem sua própria história, seu próprio fazer, para se autoafirmarem. As várias gerações são valorizadas na interação, contrastando com o processo de ruptura atual: “Está cada um no seu espaço, não há um diálogo tão grande.”

Geralmente, comunidades são visitadas por pesquisadores, mas as pesquisas em si nunca retornam a elas. Os novos museus se preocupam em fazer um levantamento do material que já existe a respeito dos grupos estudados, reavivando memórias que podem ter sido enterradas por processos de silenciamento. “Isso contribui para esse processo de afirmação étnica, principalmente no caso dos indígenas, e luta por direitos”, afirma Santos. “Esses novos museus são uma ferramenta para que seja possível melhorar a qualidade de vida nas comunidades. Não é a atividade fim, é o meio.”

A pesquisadora afirma que o museu é um processo, porque está sempre se revendo. Visitou o Museu da Maré, que a inspirou para a investigação, em duas situações: em uma delas, uma equipe estava em reunião sobre as próximas ações da instituição e sobre a exposição itinerante que ia circular pelo bairro, e na outra, havia vários visitantes circulando. “Cada museu é um universo diferente”, diz. Suas realidades conversam, mas possuem especificidades. “Não adianta chegarmos em uma instituição, acharmos que vamos achar tudo aquilo que idealizamos.”

Cada “tempo” na Maré ilustra um tema que a comunidade enfrenta (Imagem: Suzy Santos)

Santos conta que, quando fez Iniciação Científica em 2013, ainda possuía um olhar julgador para as instituições. Diferente do mestrado, havia adotado um conceito de um autor específico e definido o que era um museu comunitário para ela. “Conforme conhecia esses novos museus, comecei a perceber que não se encaixavam em um modelo e passei a rever meu olhar. A ideia de usar vários autores e contrapô-los foi justamente por não pensar mais que existe um modelo.” Ela ressalta que, mesmo assim, precisa de conceitos básicos para diferenciar os novos museus dos tradicionais.

Existe uma cobrança de profissionais da museologia em relação a esses museus comunitários sobre participação e democracia. Para a pesquisadora, é importante antes conhecer as realidades, “e não simplesmente chegar apontando o dedo”. Propõe pensar sobre as iniciativas, identificar os problemas que as distanciam da forma ideal. “Se continuarmos com esse ponto de vista colonizador, não vamos contribuir para que processos museológicos, e outros processos da sociedade, sejam efetivados de fato.”

O que está no futuro

A dependência do aparato governamental é uma das questões que mais preocupam profissionais da museologia e administradores dos novos museus. Santos afirma que os maiores desafios do museu comunitário se relacionam com gestão, sustentabilidade e capacitação.

Essa instituição resiste a se encaixar em modelos, o que gera a questão de como manter essa autonomia e, ao mesmo tempo, contribuir para seu funcionamento. Pensando em gestão, é preciso decidir com quem essas parcerias acontecem e como estabelecer compromisso, de forma a não prejudicar os processos museológicos e a participação comunitária. Além disso, a pesquisadora ressalta que capacitação não deve ser impositiva, mas uma troca, um diálogo, entre profissionais da museologia e as comunidades.

Apesar do consistente crescimento do número desses novos museus desde os anos 2000, a pesquisadora afirma estar incerta sobre o futuro da nova museologia. “Antes, havia um contexto favorável”, conta Santos. “Havia Ministério da Cultura, Ibram [Instituto Brasileiro de Museus], que oferecia editais do Programa Pontos de Memória. Existia uma política pública que dava suporte. Não sei se o contexto político atual continuará sendo favorável.”

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